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De Dilma a Bolsonaro: as transformações matriciais na política externa brasileira

De Dilma a Bolsonaro: as transformações matriciais na política externa brasileira 1IntroduçãoDilma Rousseff assumiu a presidência em meio a expectativas de continuidade em relação ao programa de Luís Inácio Lula da Silva. Depois de oito anos de crescimento econômico, ampliação das políticas sociais e forte inserção internacional, o Brasil assumiu um maior otimismo em relação às suas capacidades internacionais. Na política externa, esperava-se alguma reorientação, mantendo as diretrizes básicas do Governo Lula. Contudo, se a política externa de Lula gerou forte debate intelectual, com artigos, livros e seminários, a de Dilma não teve a mesma repercussão acadêmica. Com a deterioração da política doméstica, a atenção de Dilma para a política externa diminuiu ainda mais, com o cancelamento de viagens. Em abril de 2016, a Câmara dos Deputados votou pela admissão do processo de impeachment e pôs fim ao seu governo, levando a uma autodenominada reorientação da política externa brasileira.Este artigo tem como objetivo analisar as transformações da política externa brasileira recente, identificadas a partir do conceito de matriz de inserção internacional. Neste sentido, na perspectiva de compreender as grandes linhas de ruptura e continuidade da política externa brasileira na ultima década, utilizou-se, como recurso analítico, a noção de matriz de política. Ricardo Sennes defende o uso desta noção, argumentando que ela possibilita trabalhar com um enfoque e um distanciamento que não localizam, necessariamente, linhas divisórias da política externa, definidas apenas pelos mandatos presidenciais, possibilitando, como isso, novas possibilidades interpretativas. Para o autor, “A noção de matriz diz respeito aos contornos mais gerais da política externa de um país e busca determinar a forma pela qual ele concebe a dinâmica do sistema internacional” (Sennes, 2003, p.36).Assim, o esforço para identificar a matriz sobre a qual se baseia a política externa de um país implica traçar uma linha condutora e articulada de vários elementos que compõem sua inserção internacional. Pressupõe, principalmente, ordenar de forma inteligível vários fatores de natureza distinta que interagem na determinação da política externa. Nesse sentido, a noção de matriz procura os condicionamentos e opções estruturais, que tendem a sofrer mudanças em tempos mais dilatados do que os governos em períodos democráticos e regimes presidencialistas (Sennes, 2003, p.37). Por outro lado, a noção de matriz permite realizar uma pesquisa que ganha mais possibilidades analíticas, ao interrogar sobre as permanências e rupturas da política externa de sucessivos governos. Nesse sentido, esta perspectiva interpretativa permite trabalhar a hipótese desta pesquisa, de que a matriz da política externa brasileira de inserção internacional da primeira década do século XXI vem apresentando dificuldades e ajustes desde o Governo Dilma, reestrururação desde o Governo Temer, mas cuja mudança ganhou contornos mais nítidos com a ascensão do Governo Bolsonaro.Visando a promover um debate amparado teoricamente sobre a política externa do primeiro mandato de Dilma, busca-se analisar seus condicionantes e explicitar sua racionalidade. Já em relação ao segundo mandato, o processo de impeachment da presidente Dilma, concluído em 2016, também reforça a necessidade de uma análise de sua repercussão na política externa brasileira. Da mesma forma, reforça a problematização da destituição da presidente Dilma como marco para a finalização da matriz de inserção regional iniciada desde o Governo Lula (2003–2010). A partir do Governo Michel Temer (2016–2018) estaria em estruturação uma nova matriz de inserção internacional, com contornos mais claros no Governo Bolsonaro (2019 em diante).Assim, a importância desta pesquisa reside precisamente em oferecer uma análise dos condicionantes das transformações da política externa brasileira. Da mesma forma, pode oferecer subsídios para a compreensão dos dilemas e desafios da inserção internacional do Brasil, seus limites e possibilidades, em um contexto de crise e transformação da matriz de inserção internacional na segunda década do século XXI.2As transformações na Política Externa Brasileira sob o Governo DilmaAs análises sobre a política externa de Dilma apresentaram variações comuns nos principais veículos de comunicação brasileiros, majoritariamente críticos à política externa “ativa e altiva” de Lula e do ministro Celso Amorim, enquanto houve poucos trabalhos acadêmicos exclusivamente dedicados a ela (Cervo & Lessa, 2014; Cornetet, 2014; Jesus, 2014; Pecequilo, 2014; Saraiva, 2014; Saraiva & Gomes, 2016; Souza & Santos, 2014). Na mídia, houve inicial comunhão de interpretações sobre um novo rumo que a diplomacia brasileira tomaria em 2011. Supostamente sinalizada por entrevista da presidenta ao The Washington Post (Weymouth, 2010), com divergências a algumas posições do antecessor, em particular sobre direitos humanos, a mudança foi recebida com certa euforia pelos críticos de Lula.As expectativas iniciais de opositores focavam nas primeiras decisões de Dilma em discussões de direitos humanos e suposto retorno ao predomínio do Itamaraty na formulação da política externa (Engstrom, 2012). Contudo, a expectativa de grandes alterações na diplomacia e apostas em uma reaproximação com os Estados Unidos, proposta por defensores de uma inserção focada no Norte, não se concretizaram. Logo, o “consenso” apontou para a simples continuidade da política externa com relação à de Lula, criticando o que denominam “tendências ideológicas e partidárias” (Barbosa, 2014).Aos poucos, uma nova interpretação sobre a diplomacia de Dilma ganhou força na mídia, parcialmente reproduzida em artigos acadêmicos: um recuo ou retraimento diplomático. Críticos e defensores de Lula apontaram um reduzido interesse da presidenta pelo tema e uma concentração das decisões da área na presidência e em sua assessoria especial para assuntos estrangeiros, alijando o Itamaraty (Stuenkel, 2014). Reflexões sobre a nova conjuntura econômica e política internacional foram escassas, mas compartilham a percepção de um ambiente desfavorável, ainda que se priorize a atribuição de causalidade aos fatores domésticos e à personalidade da presidenta. Ainda, identifica-se, no conjunto de análises, forte viés normativo e prescritivo, oriundo certamente da perplexidade diante de algumas opções internacionais.3A redefinição das prioridades internacionais durante o Governo DilmaA visão do governo brasileiro era de que o sistema internacional estava passando por um processo de redistribuição de poder nas relações internacionais, se encaminhando para um sistema multipolar. Por outro lado, o cenário internacional estava caracterizado por uma crise econômica que atinge todos os países, por conflitos regionais em diversos pontos do globo e por desafios ambientais (Rousseff, 2012). A comunidade internacional não estaria conseguindo lidar com esses problemas, sendo, portanto, imperativa uma reforma nos mecanismos de governança global, tanto econômicos e financeiros como políticos e securitários. Para solucionar esses dilemas, o governo brasileiro entendia que o multilateralismo deveria ser fortalecido, tanto no sentido de aumentar o diálogo entre os polos consolidados e emergentes, como no sentido de promover um multilateralismo inclusivo, com maior representatividade para países menores e mais pobres (Patriota, 2011). Destaca-se a necessidade do fortalecimento da ONU a fim de que essa possa desempenhar um papel central para a consolidação da ordem multipolar (Rousseff, 2012).Nesse contexto, o Brasil se apresenta como uma das principais economias do mundo, tornando-se um interlocutor indispensável nos debates acerca dos temas centrais da política mundial (Patriota, 2011). O Brasil encontra-se em processo de estabelecimento de um “novo modelo de desenvolvimento com inclusão social e consciência ambiental”, que inclui em sua ação externa a busca por parcerias para o avanço em ciência, tecnologia e inovação, ampliando o contato com o setor privado e com a sociedade civil. O Brasil passa pelo seu maior período de estabilidade democrática, com consolidação de suas instituições, com taxas sustentáveis de crescimento econômico e de produção e com mercado interno aquecido, a despeito da crise mundial. Portanto, acredita-se que essa seria a primeira oportunidade real de o Brasil se tornar um país desenvolvido (Rousseff, 2011). Internamente, apesar dos inúmeros avanços necessários para a formação de um país socialmente justo, obtiveram-se conquistas na área de “direitos humanos, na valorização da cidadania, na modernização da atividade econômica, na promoção de um desenvolvimento mais justo e ambientalmente sustentável” (Patriota, 2011).A inserção internacional do Brasil articularia dois interesses principais: (1) o aprofundamento da integração sul-americana como prioridade; (2) a ampliação da presença brasileira em escala global. Assim, identificam-se como os principais interesses estratégicos do Brasil no mundo: a) consolidar e ampliar a integração econômica, política e física sul-americana, tendo o Mercosul como núcleo duro, fortalecido pela Unasul; b) fortalecer os laços latino-americanos e caribenhos em um sentido mais amplo, através da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos); c) projetar o continente sul-americano como um pólo importante no mundo multipolar que se anuncia; d) estreitar relações diplomáticas e abrir novos canais de diálogo político e de cooperação com África, Ásia e Oriente Médio; e) fortalecer e consolidar parcerias e a concertação com os principais países emergentes, tanto no âmbito bilateral como multilateral, como IBAS e BRICS; f) manter seus tradicionais laços com os países desenvolvidos, tornando-os mais equilibrados; g) consolidar a ordem multipolar, fortalecendo laços com os polos já consolidados, mas promovendo um multilateralismo inclusivo, com representação para países menores e mais pobres; h) fortalecer o multilateralismo e suas instituições, em especial a ONU; i) reformar os mecanismos de governança global para refletir a realidade geopolítica atual e não as assimetrias do passado, j) tornar-se um membro permanente no Conselho de Segurança da ONU; k) inserir-se nos principais debates da política internacional; l) inserir o tema do desenvolvimento e do combate à pobreza nos debates multilaterais, junto a temas ambientais; m) combater as assimetrias da economia e do comércio mundiais para garantir a competitividade da indústria nacional e do setor agroexportador; n) priorizar ciência, tecnologia e inovação como meios para a ascensão a um novo estágio de desenvolvimento; o) proteger brasileiros no exterior (Rousseff, 2012). Dessa forma, as prioridades da política externa no Governo Dilma representam uma continuidade do Governo Lula, com uma ênfase nos fóruns multilaterais.4As transformações na atuação multilateral no Governo DilmaNa posse de Figueiredo, Dilma reiterou que “[o] Brasil acredita no multilateralismo como única forma eficiente de produzir consensos estáveis no âmbito internacional” (Rousseff, 2012). Ademais, defendeu fortemente o multilateralismo em todos os seus discursos de abertura da Assembleia-Geral da ONU. De acordo com Amorim (2013), então Ministro da Defesa, o multilateralismo é o garantidor, ou seja, o “sustentáculo político-jurídico” da multipolaridade.Em 2011, o brasileiro José Graziano foi eleito diretor-geral da FAO, tendo sido reeleito. Em 2012, o Brasil foi eleito pela terceira vez, com 184 votos, para ocupar um dos 47 assentos do Conselho de Direitos Humanos da ONU. No Conselho de Segurança, o Brasil foi eleito membro rotativo pela última vez no biênio 2010–2011. Em 2014, o País foi convidado a participar da Conferência Internacional sobre a Síria (Genebra II), em Montreux, tendo Dilma recebido críticas por ter enviado apenas o secretário-geral do Itamaraty (Mello, 2014).Apesar de manter a defesa de reforma do Conselho de Segurança, o Governo Dilma percebeu uma conjuntura ainda menos propícia a mudanças importantes no multilateralismo, tendo em vista a crise de 2008. Ocupando ainda um assento rotativo em 2011, o Brasil defendeu soluções multilaterais para conflitos e uso da força apenas para defender o mandato específico da ONU (Cervo & Lessa, 2014), especialmente durante as discussões sobre a guerra na Líbia. Dessa forma, uniu-se a Alemanha, China, Índia e Rússia contra a intervenção armada, abstendo-se da criação de zona de exclusão aérea, cuja resolução teve o mandato extrapolado, ensejando críticas sobre direitos humanos.Em 2011, Dilma apresentou o conceito de responsabilidade ao proteger (RwP), buscando balizar a responsabilidade de proteger (R2P). Nesse sentido, o Brasil demonstrou sua posição no que se refere a intervenções internacionais, ressaltando a ideia – presente entre os princípios da ONU – de não causar dano maior que o que se busca combater. A contribuição conceitual foi recebida com misto de entusiasmo e ceticismo, com qualificações do conceito como vago, também aplicável à R2P segundo Foley (2012). De qualquer forma, ao enunciar o termo, o Brasil demonstrou sua preocupação com as motivações políticas e os possíveis efeitos nefastos de intervenções humanitárias, buscando ter uma participação mais ativa na agenda de segurança internacional (Foley, 2012).A proposta foi um marco na produção normativa sobre R2P, propondo critérios para intervenções, um mecanismo de monitoramento e revisão para avaliar mandatos do Conselho, e renovada atenção à construção de capacidades para evitar crises. Dois problemas se colocaram à relevância e efetividade da RwP: resistência de alguns países em responsabilizar-se mais com accountability, avaliação e prevenção, e baixa prioridade assumida na agenda brasileira, tendo legado uma maior elaboração do conceito à comunidade internacional (Welsh et al., 2013).A agenda comercial multilateral sofreu importantes reveses no Governo Lula, tendo o empenho de Amorim na Rodada Doha esbarrado em resistências nas negociações do QUAD (EUA, União Europeia, Brasil, Índia) em 2008 (Amorim, 2015), culminando na paralisação das negociações. A presidenta, contudo, manteve a defesa de solução multilateral para a liberalização comercial, percebendo as ameaças de acordos bilaterais assimétricos (Paraguassu, 2013). Em 2013, a reunião ministerial em Bali deu novo fôlego à Rodada. O Acordo de Facilitação do Comércio, parte do Pacote de Bali, primeiro acordo após 2008, entrou em vigor em 2017 e abriu caminho para novos acordos em Nairóbi em 2015.Atribuindo importância à OMC, o Brasil promoveu a candidatura de Roberto Azevêdo à direção-geral, eleito em 2013, fruto da trajetória brasileira na organização. Além disso, a política comercial brasileira fez uso recorrente do sistema de solução de controvérsias, como no recurso contra medidas desleais estadunidenses contra a exportação de suco de laranja (Brasil, 2012). Deu-se continuidade à denúncia dos subsídios estadunidenses ao algodão, após suspensão do pagamento de reparações, com uma solução acertada em 2014 (Pecequilo, 2014).Nas discussões ambientais, manteve-se a defesa dos interesses do Sul contra obstáculos ao desenvolvimento impostos por determinadas decisões. A Rio+20, em 2012, contou com 193 delegações – sem, contudo, grandes poluidores, como EUA, Reino Unido e Alemanha. Buscou-se, com sucesso, incluir a questão da pobreza na declaração final. Ainda, manteve-se a coalizão BASIC – Brasil, África do Sul, Índia e China – com reuniões ministeriais, e houve importantes declarações de intenção sobre redução da emissão de gases causadores do efeito estufa até 2020 (Cervo & Lessa, 2014). Em 2015, o Brasil foi um importante articulador do Acordo de Paris, que deu novo rumo à luta contra o aquecimento global.Souza e Santos (2014) buscam identificar traços definidores da diplomacia de Dilma e suas continuidades e descontinuidades em relação a Lula, analisando seus discursos na Assembleia Geral. Eles concluem haver uma manutenção das diretrizes de Lula em temas econômicos e sociais e a adoção de inovações e de linhas levemente diferenciadas em questões de gênero e segurança internacional. As posições de Dilma no multilateralismo mantiveram as linhas gerais traçadas por Lula. Apesar de reduzido espaço para atuação e seus escassos avanços, percebe-se que o País procurou avançar as ideias-força antecessoras acrescendo elementos novos, como o RwP. Nas discussões comerciais, colheram-se frutos da atuação prévia. Ainda, a eleição do Brasil para órgãos do sistema ONU demonstrou a manutenção de anseios por maior representação, ainda que sem avanços em sua reforma.5IBAS, BRICS e a Cooperação Sul-SulNo âmbito das iniciativas diplomáticas com outros grandes países emergentes, o Governo Dilma manteve os dois grupos de concertação criados no Governo Lula: IBAS e BRICS. O IBAS enfrenta importante desafio: ausência de cúpulas presidenciais desde 2011, após a presidenta ter cancelado sua participação na cúpula de 2013, e o governo sul-africano ter preferido não realizar reunião logo antes da cúpula do BRICS de 2014. A iniciativa mantém seus encontros ministeriais, fóruns setoriais e as atividades do Fundo IBAS. Uma das possíveis explicações para essa situação é ser o IBAS secundado pelo BRICS, principalmente após a inclusão da África do Sul neste em 2011.De fato, o BRICS foi um dos mais importantes veículos de atuação da diplomacia de Dilma. Pode-se dizer que houve manutenção e aprofundamento da estratégia de Lula de soft balancing via BRICS (Flemes, 2010). Mantendo o tom crítico à configuração do sistema internacional e às assimetrias institucionais, Dilma viu no agrupamento um instrumento para defender suas pautas. Em 2014, o BRICS aprovou a criação de duas instituições: Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e Arranjo Contingente de Reservas (ACR), demonstrando que suas competências ultrapassam sua concepção original (Lima, 2015).O NBD é a primeira instituição com personalidade jurídica internacional do grupo. Prevendo o financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em países em desenvolvimento, seu intuito é complementar as funções do Banco Mundial. Ainda, ele foi planejado para permitir a inclusão de novos membros do Sul, mas manter seu controle pelos fundadores. O ACR, proposta brasileira de auxílio em crises financeiras, complementar ao FMI, visa prover apenas os membros com divisas de acordo com suas capacidades contributivas e necessidades de apoio. Apesar de divergências, o BRICS vem tratando cada vez mais temas, como crises regionais, e cooperando em diversas frentes (Lima, 2015).A cooperação Sul-Sul foi uma das bandeiras mais defendidas pela política externa de Lula, sendo marca de sua inserção internacional. Dilma manteve a estratégia de articular as dimensões econômicas, políticas e sociais, conferindo grande peso à social no âmbito externo. Assim, a cooperação foi mantida como elemento prioritário na agenda internacional, defendida desde a posse. Aponta-se para uma intensificação das iniciativas para os vizinhos, enquanto outras regiões, embora ainda nomeadamente prioritárias – África e Oriente Médio – tenham sido mais afetadas por cortes orçamentários (Milani & Carvalho, 2013).6Relações regionais e com os Estados UnidosEm 2012, durante o processo de revisão da política externa, Patriota afirmou que Dilma manteria sua âncora regional, procurando promover a preservação da paz e da democracia no continente. O chanceler reforçou a importância dos vizinhos enquanto parceiros comerciais (Oliveira & Celestino, 2012). Após a ausência de Dilma (além de Kirchner e Chávez) na reunião de cúpula da Unasul, em Lima, em 2012, contudo, surgiram críticas ao que foi interpretado como um distanciamento da presidenta da região (Carmo, 2012).Juan Tokatlian (2014), ao analisar a Unasul, apesar de reconhecer suas importantes conquistas – sobretudo sua assertividade diante de crises políticas em seus membros –, qualifica-a como errática e desprovida de estratégia clara e liderança forte. Entre os fatores causadores dessa falta de orientação estaria a menor relevância atribuída pelo Governo Rousseff. Maria Regina Soares de Lima, em entrevista, identificou continuidade, mas falta de inovação na diplomacia de Dilma para a América do Sul. Com a retração da ação externa brasileira em meio à crise doméstica, iniciativas para América Central e Caribe perderam fôlego, e a atuação das empresas brasileiras perdeu o apoio do BNDES em meio aos escândalos de corrupção (Saraiva & Gomes, 2016).A maior alteração no Mercosul no período foi a adesão da Venezuela, em 2012, que dependia da aprovação do Senado paraguaio. Durante a suspensão paraguaia por sua ruptura institucional, apoiada na cláusula democrática do Mercosul, a Venezuela foi admitida como membro pleno. No Brasil, noticiou-se que o Itamaraty teria sido contra a permissão de entrada à Venezuela naquele momento (Cantanhêde, 2012). Ainda, a Bolívia solicitou adesão, e Guiana e Suriname se associaram ao bloco (Saraiva & Gomes, 2016). A suspensão venezuelana em 2016 por não se adequar aos parâmetros do MERCOSUL põe em cheque a expansão do período Dilma.Apesar das críticas ao Mercosul, sobretudo após a criação da Aliança do Pacífico (2012) e durante o período eleitoral (2014) por sua suposta estagnação, a corrente comercial brasileira com o bloco segue importante (Marreiro, 2014). Ademais, houve avanço nos investimentos do Fundo de Convergência Estrutural, sobretudo no Paraguai, que reingressou no bloco em 2013. As relações com Argentina e Uruguai, sob as presidências de Kirchner e Mujica foram bastante positivas. O Brasil se manteve o principal parceiro comercial argentino (Jesus, 2014), apesar da crescente concorrência chinesa, e estabeleceu um novo paradigma nas relações com Montevidéu, visando incrementar a cooperação bilateral em diversas áreas (Giraldi & Aquino, 2012).Em relação aos EUA, as primeiras manifestações da presidenta foram recebidas pela mídia como o início de uma reaproximação com os Estados Unidos após as tensões que sucederam a Declaração de Teerã. Contudo, a maior parte das divergências no relacionamento bilateral persistiu no primeiro mandato de Dilma. Pecequilo (2014) percebe uma continuidade na política brasileira e no respeito mútuo, após a conquista de Lula de aceitação por parte de Washington de uma posição autônoma, e muitas vezes discordante, do Brasil em relação aos EUA. As pressões internas por alinhamento, simpáticas à política externa dos anos 1990, foram frustradas pela manutenção do que Pecequilo (2014) chama de “diversificação e acomodação”. Enquanto promovia a institucionalização do “diálogo da parceria global” e iniciativas de cooperação trilateral, Dilma manteve as disputas comerciais.Pecequilo (2014) aponta um segundo momento das relações bilaterais: “distância, repensamento e estagnação” (2013–2014). A inflexão entre os períodos é marcada pela descoberta da espionagem estadunidense ao governo brasileiro, a empresas brasileiras e à própria presidenta. Em resposta, Dilma cancelou viagem marcada aos Estados Unidos e iniciou campanha, posteriormente apoiada pela Alemanha, pelo estabelecimento de regime internacional de governança da Internet. Aprovou-se domesticamente o marco civil da rede, que regulamenta a privacidade, a inviolabilidade, o sigilo, a neutralidade, entre outras condições de utilização (Jungmann, 2014).A presidenta buscou fortalecer sua posição, diversificando ainda mais as parcerias, como demonstram o leilão do campo de libra e a compra dos caças suecos Gripen. De forma geral, o Governo Dilma manteve o tom do relacionamento com Washington: demanda por respeito à autonomia brasileira e algumas tensões sobre comércio e segurança, principalmente. Essa posição parece ser corroborada pelo esforço estadunidense em se reaproximar do Brasil, como a visita do vice-presidente, Joe Biden, em 2014, demonstrou. Entretanto, as denúncias de espionagem por parte dos EUA, que vieram a público em 2015, dificultaram a proposta de aproximação bilateral.7O Governo Dilma e a crise brasileiraA política externa brasileira desde o início do século XXI se estruturou sobre uma nova matriz de inserção internacional, que constitui a superação do modelo de inserção internacional do país dos anos 1990. A nova matriz de política externa teve como principais características o aprofundamento da integração regional (seguido de uma mudança de enfoque), a retomada da tradição multilateral do Brasil, um novo perfil crítico das relações assimétricas entre os Estados, a busca de parcerias estratégicas com países similares em todos os continentes e uma reaproximação aos países subdesenvolvidos, bem como a manutenção de relações com os países desenvolvidos. Além disso, verifica-se a retomada de uma ofensiva diplomática através da construção de uma agenda de temas sociais. Essa foi a base da atuação do Governo Lula em seus dois mandatos (2003–2010) e permaneceu na política externa do Governo Dilma (2011–2016), embora com ajustes.Entretanto, assume-se que o Governo Dilma sofreu um processo de desgaste e crise dessa matriz, em função das mudanças sistêmicas internacionais e da conjuntura doméstica. Em especial a partir de 2015, política brasileira vivenciou uma disputa intensa. A pauta nacional dominou a política brasileira, desde que a vitória eleitoral apertada, associada aos reflexos da crise econômica e as impactantes denúncias de corrupção, encorajou a oposição a não encerrar o debate eleitoral de 2014. A obstrução da pauta nacional revela os impasses do “presidencialismo de coalizão”, cujo desfecho foi o processo de impeachment (Svartman & Silva, 2016).Por outro lado, o cenário internacional vem demonstrando dificuldades para a inserção internacional das potências médias e emergentes, como o Brasil, com a retomada do crescimento econômico das grandes potências e a transferência (ao menos parcial) da conta da crise para os países em desenvolvimento. Neste contexto, o otimismo deu lugar novamente ao pessimismo, abrindo espaço para um revisionismo. Esse revisionismo, embora eivado de críticas à política externa brasileira, não constitui essencialmente em um revisionismo crítico, pois ignora bases estruturais na análise. A questão a ser formulada parte de outras premissas, em especial como e para quem determinada política foi formulada.A história da política externa brasileira esteve sempre fortemente ligada ao seu modelo de desenvolvimento. Utilizando a nomenclatura de Amado Cervo (2008), pode-se identificar que os grandes paradigmas organizam a inserção internacional do Brasil, e estão fortemente ligados ao modelo de desenvolvimento (agrário, desenvolvimentista, neoliberal, logístico). O paradigma logístico seria a síntese superior dos paradigmas desenvolvimentista e neoliberal, recuperando a capacidade do Estado em promover o desenvolvimento econômico e social em uma nova conjuntura da globalização.Entretanto, neste contexto, o último estágio, o logístico, em vigor desde a virada do milênio, apesar de suas realizações, se fragilizou. Baseado fortemente na interação internacional das “grandes campeãs” nacionais e de uma crença excessiva nas virtudes do empresariado nacional moderno e progressista, os reflexos da crise econômica atingiram fortemente a capacidade estatal e as bases de apoio nacional. Neste cenário, alguns dos representantes do Estado Logístico sofreram processo de investigação, por denúncias de corrupção. Desde então, as forças conservadoras, os neoliberais, os setores rentistas, entre outros, engrossaram o coro de críticas ao projeto de desenvolvimento construído na primeira década do século XXI, que buscava superar as históricas vulnerabilidades através do desenvolvimento econômico e social e de uma inserção internacional mais altiva. O impasse interno refletiu na política externa.É inegável que a política externa do Governo Dilma teve escopo e resultados bem mais modestos que do Governo Lula. Mas também é inegável que existem causas estruturais e conjunturais que ajudam explicar esta situação. O “retraimento” da política externa brasileira, sob Dilma, tem como fundamentos: a) certo esgotamento do “ativismo diplomático” brasileiro desenvolvido na Era Lula; b) crise ou paralisia das negociações multilaterais (OMC e ONU); c) dificuldades econômicas em manter a cooperação Sul-Sul em patamar elevado; d) crise interna brasileira, tanto de ordem econômica como política; e) reflexos da primavera árabe, que alterou o jogo de forças na região e bloqueou algumas iniciativas para Oriente Médio e Norte da África; f) mudança contextual da América do Sul, fragilizando a integração. As iniciativas brasileiras no sistema internacional foram se escasseando. A proposta “Responsabilidade ao Proteger” (RWP) em oposição ao “Responsabilidade de proteger” (R2P) foi objeto de um painel na ONU, mas em seguida acabou não avançando. As propostas da Rio+20, realizada no Brasil em 2012, tiveram dificuldades de implementação. As viagens internacionais foram escasseando e com baixa inovação. Desde 2015, a agenda interna e depois o processo de impeachment absorveu as preocupações do Governo, impossibilitando uma agenda externa mais propositiva (Svartman & Silva, 2016).8Temer e a “nova política externa” do Brasil: transição para nova matriz de inserção internacional?Em 12 de maio de 2016, com a abertura do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff pelo Senado, o vice Michel Temer assumiu como presidente interino e iniciou uma nova política interna e externa. Para o Ministério das Relações Exteriores, foi indicado José Serra, um experiente político vinculado ao PSDB, que havia sido ministro no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995–2002). No seu discurso de posse, em 18 de maio, o ministro apresentou dez diretrizes que guiariam a nova política externa brasileira sob seu comando. Essas diretrizes significaram o desmonte da política externa brasileira desenvolvida desde 2003, pela gestão Lula, e, em alguns casos, inclusive a mantida por Fernando Henrique Cardoso e por governos anteriores, anunciando mudança matricial na política externa brasileira.Em síntese, Serra prometia uma política externa “que não está a serviço de uma ideologia”, responde aos países bolivarianos as críticas ao processo de impeachment e indica que o Brasil deve se afastar dos países em desenvolvimento nas negociações sobre o meio ambiente e mudanças climáticas. Trata da necessidade de reformas no sistema internacional, mas não reivindica claramente um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Critica a atuação brasileira nos fóruns multilaterais de comércio e defende a multiplicação de acordos bilaterais. Também demonstrou interesse em “flexibilizar o Mercosul” e avançar em negociações com a Aliança do Pacífico. Reforçou a ideia de que o Brasil tem de se aproximar dos países ricos (EUA, Europa e Japão) e da China e repensar as prioridades da cooperação Sul-Sul. Prevê, igualmente, a revisão da política africana do Brasil. Sobressai ainda a ideia de que a atuação estaria orientada para o estabelecimento de parcerias comerciais.Embora a política externa brasileira tenha como tradição evitar mudanças bruscas, em outros momentos já se verificou uma reorientação externa mais incisiva. Talvez uma das mais dramáticas tenha sido na época do golpe civil-militar, em 1964, quando a Política Externa Independente desenvolvida por Jânio Quadros e João Goulart foi desmontada e substituída por uma política externa “interdependente”, dependente e subordinada aos EUA, e recuada em suas pretensões globais. O desengajamento internacional foi tão grande que os próprios militares posteriormente promoveram uma nova revisão, resgatando pontos da Política Externa Independente.Em março de 2017, o chanceler José Serra pediu demissão do cargo de Ministro das Relações Exteriores, com a justificativa de problemas de saúde. Para substituí-lo, assume Aloysio Nunes, também Senador da República e com uma trajetória semelhante à de José Serra. Ex-guerrilheiro no período da Ditadura Militar, exilado, filiado ao PSDB, e também com base política em São Paulo. José Serra vinha se desgastando no Ministério, e havia sinais de que o Temer desautorizou algumas de suas iniciativas e ideias. Na Assembléia Geral da ONU em 2016, Temer afirmou que “a integração latino-americana estava acima dos interesses ideológicos” e também de que reafirmava a candidatura do Brasil a uma vaga no Conselho de Segurança. Embora se esperasse alguma inflexão na substituição de Serra na Chancelaria, o fato é de que na prática o MRE continuou com a mesma política.As críticas a política externa do Temer se acirraram inclusive dentro do Ministério das Relações Exteriores. O desconforto foi expresso no manifesto de jovens diplomatas sobre a política externa brasileira, algo incomum num corpo burocrático com alto grau de disciplina e hierarquia. Neste contexto, o chanceler Aloysio Nunes buscou fazer pequenas correções de rumo, buscando um perfil mais discreto para o Itamaraty, mas mantendo a agenda e o “desengajamento estratégico” iniciado por José Serra. Um ponto alto deste desengajamento ocorreu em abril de 2018, com o anúncio feito pelo Brasil (juntamente com Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Paraguai) de suspender sua participação na Unasul.9O (des)engajamento regional com o Governo TemerA face mais visível da política externa de Temer-Serra tem sido o entorno regional. Sua atuação para a América do Sul, inferida a partir de seus discursos recentes, tem como diretrizes: a) responder duramente e atacar os críticos do processo de impeachment; b) trabalhar para a construção de um bloco liberal e antiprogressista na região; c) rebaixar o Mercosul a uma área de livre comércio para facilitar acordos bilaterais extrarregionais; d) revisar a política externa brasileira em relação aos governos de esquerda e ao tratamento de questões regionais. O Governo Temer também fortaleceu a ideia de se desvencilhar do Mercosul para facilitar acordos de livre comércio de forma bilateral (Silva & Perez, 2019).A reação internacional ao governo interino no Brasil foi de frieza e desconfiança, praticamente a mesma quando se confirmou o Impeachment. Na América do Sul, a maioria dos países buscou distanciamento do novo governo, ou ao menos se posicionou mais claramente. Já no Mercosul, enquanto Argentina e Paraguai saudaram-no, o Uruguai demonstrou uma discreta postura cética, e a Venezuela foi mais incisiva em suas críticas. A resposta brasileira tem sido de duras críticas à Venezuela, inclusive buscando questionar e rever sua participação no Mercosul e impedindo que esta ocupe a presidência pro tempore do bloco. Em 2017, com o acirramento da crise venezuelana, o posicionamento brasileiro tem sido de criticar o governo e isolar o país, o que inviabiliza a possibilidade de atuação do Brasil como mediador do conflito, o que seria um papel esperado de uma liderança regional. O posicionamento brasileiro e o acirramento da crise venezuelana, sobretudo após as eleições para uma nova Assembléia Constituinte, abrem espaço para que o presidente norte-americano afirme, sem contestação brasileira, de que seria possível uma intervenção militar dos EUA na Venezuela.Convém ressaltar que as censuras à Venezuela eram basicamente ideológicas, pois sua participação no Mercosul é vantajosa para o bloco, em especial para o Brasil, que é superavitário em relação àquele país, tendo uma economia complementar. De fato, a nova posição do Brasil em relação aos países sul-americanos e ao Mercosul incorre em uma série de erros estratégicos – contrariando a experiência e os interesses do país na região – quando acredita que a Argentina neoliberal se aproximará do Brasil neoliberal e que posição de “força” tem eficácia sobre os países vizinhos. O efeito costuma ser o contrário.Ao contrário do que se imagina, não é a coincidência de regimes que aproxima Brasil e Argentina, mas o quanto o governo argentino quer balancear o poder americano ao buscar uma aproximação. O neoliberalismo na Argentina tende a afastá-la do Brasil. Do mesmo modo, a cordialidade oficial no trato com os vizinhos é regra básica, e as posições ásperas do Ministro das Relações Exteriores contradizem a experiência histórica, isolam o Brasil e desmontam a estratégia da integração sob a liderança brasileira.Já o Mercosul funciona como uma reserva de mercado para os produtos industriais brasileiros na região. Dessa forma, não constitui interesse brasileiro um caminho solitário, desvencilhando-se dos vizinhos para alcançar acordos bilaterais fora do continente. Essa estratégia pode parecer sedutora, mas poderia acarretar a perda de importantes mercados para produtos industriais brasileiros, bem como abrir ainda mais a região para competidores extrarregionais. Tradicionalmente, a política externa em relação ao entorno regional tem como base o Mercosul e a integração sul-americana, criando um espaço para o exercício de liderança e credenciando o Brasil para atuação mais assertiva em fóruns globais. Entretanto, o caminho escolhido por Temer corre o risco de destruir um patrimônio diplomático duramente construído nas últimas décadas (Silva & Perez, 2019).Em relação à integração “física” Sul-Americana – IRSA, Temer também teria de lidar com o processo de integração física, com muitas obras em andamento e que inclusive foram incluídas no PAC. A incapacidade momentânea das empresas de infraestrutura pode abrir espaço para multinacionais norte-americanas, européias e até chinesas. O desengajamento abre espaço para o fortalecimento das potências estrangeiras e suas empresas na região. O Brasil, nesse sentido, desce um degrau na escala do comportamento esperado das potências médias, que constitui em buscar resguardar a região para sua própria influência.10As transformações matriciais da política externa e o Governo BolsonaroAs eleições de 2018 foram marcadas pela disputa aguda de projetos políticos diferenciados, em muitos casos antagônicos. Embora a política externa brasileira não figure como tema central nos assuntos eleitorais, estava também em jogo posicionamentos sobre as escolhas, decisões e prioridades nesta área. Jair Bolsonaro foi eleito apoiado por uma frente neoconservadora, reunindo neoliberais do setor empresarial, grupos religiosos (em especial neoevangélicos), militares, “olavistas”, agronegócio, setor financeiro e agronegócio. O plano de governo e as ações dos primeiros dois anos do Governo Bolsonaro apontam para uma reorientação da política externa brasileira, nos termos propostos por Charles Hermann (1990). Para o autor, os principais drivers de mudança de uma política externa podem ser encontrados na liderança, na burocracia, no contexto interno e no contexto internacional.De fato, o Governo Bolsonaro propôs uma mudança profunda de orientação internacional, e escolheu como chanceler um diplomata de carreira (Ernesto Araújo) adepto dessa reorientação (Frenkel, 2019). Seu eleitorado também está de acordo com essa reorientação, em linhas gerais, e o contexto internacional sofreu modificações, com aumento do conservadorismo, em especial a América Latina, e a crise do multilateralismo, provocado por impasses e críticas dos governos “antiglobalistas”. Nesse sentido, verifica-se um impulso por mudança matricial na política externa brasileira, patrocinado pela coalizão de apoio ao Governo Bolsonaro e estimulado por um contexto regional mais conservador.Assim, com o Governo Bolsonaro verifica-se uma inflexão matricial na política externa brasileira, com fortes significados internos e internacionais. Em uma avaliação preliminar, verifica-se que os condicionantes da mudança matricial da política externa brasileira têm como fundamentos: a) a ascensão dos movimentos e governos conservadores na América Latina e no Ocidente; b) a crítica à política externa desenvolvida na “era PT”; c) a crítica “anti-globalista” e paralisia das instituições multilaterais; d) as mudanças na política externa norte-americana sob o Governo Trump; e) a crise econômica prolongada; f) desengajamento da integração regional.Do ponto de vista bilateral, a nova matriz de política externa busca aproximação dos países desenvolvidos e um afastamento dos países em desenvolvimento. Também seleciona ideologicamente as parcerias, procurando aproximação com países cujos governos expressem posições da direita. O Governo Bolsonaro também busca uma aproximação acrítica aos EUA, identificado como o baluarte da “defesa dos valores ocidentais”. A cooperação Sul-Sul é vista com desconfiança, ao passo em que o Brasil se afasta do Oriente Médio e da África.Em relação aos fóruns multilaterais, o Governo Bolsonaro prega o afastamento dos regimes internacionais e compromissos assumidos pelo Brasil. Identificados como agenda “globalista marxista”, os regimes ambientais, migratórios e de direitos humanos são criticados, como de renúncia aos interesses do Brasil. Da mesma forma, o Governo Bolsonaro identifica o mundo como unipolar ou bipolar e renega as tendências multipolares do sistema internacional.A política regional de Bolsonaro aponta para um desengajamento nos processos de integração, com críticas ao Mercosul e Unasul. Por outro lado, lança mão de um engajamento em assuntos internos de outros países, de corte ideológico, apoiando a oposição venezuelana em suas tentativas de ruptura institucional (através do “grupo de Lima”). Ao abandonar as iniciativas anteriores de integração, propôs o lançamento do Prosul, uma organização regional sem maiores compromissos ou institucionalidade.A política externa de Bolsonaro aponta para uma reorientação da política externa no sistema internacional, o que significaria não apenas uma inflexão, mas mudança nos postulados históricos, nos paradigmas e matrizes atuais de inserção internacional. A questão é se os fundamentos da mudança, a saber “burocracia”, “reestruturação doméstica”, e “choque externo” sustentam essa reorientação. Nesse sentido, a política externa de Bolsonaro é marcada por quatro contradições.–Contradição com a tradição e compromissos da política externa brasileira, o que pode provocar choques com a burocracia (diplomática, econômica e militar) e rupturas com padrões de inserção internacional, provocando perda de confiança de parceiros internacionais ao denunciar compromissos assumidos. No caso do Itamaraty, a nomeação de um chanceler considerado jovem, “ideológico olavista” e sem liderança provocou temores de desorganização interna e rupturas institucionais.–Contradição com os interesses dos grupos internos no Brasil (setor agrícola e industrial) pragmáticos e setores ideológicos principistas. Um exemplo foi o temor da repercussão comercial para o agronegócio brasileiro sobre um possível boicote dos países árabes, se ocorresse a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém. Nesse mesmo sentido, a exportação industrial brasileira pode ser comprometida com mudanças bruscas em relação ao Mercosul e América do Sul. Provavelmente a política externa de Bolsonaro oscilará entre os globalistas liberais de direita e os anti-globalistas conservadores.–Contradição com o tamanho e o peso do Brasil no sistema internacional. Os interesses do Brasil são de uma potência emergente, e o país enfrentaria dificuldades executando uma política de país “menor” no sistema internacional. O desengajamento brasileiro tanto na região como nos fóruns multilaterais pode ter efeitos negativos a curto e médio prazo. Na América do Sul, estaria abrindo espaço para atuação de potências extrarregionais, como China e Estados Unidos. O desengajamento brasileiro reduziria a capacidade do país em defender seus próprios interesses e, ao mesmo tempo, colaborar para a construção da ordem internacional. A autonomia, objetivo maior da diplomacia brasileira (Vigevani & Ramanzini, 2014), ficaria novamente fragilizada.–Contradição com a estrutura do sistema internacional. O governo brasileiro, ao negar a multipolaridade, com a ascensão de outras potências na ordem global, pode se posicionar erroneamente no sistema internacional e perder espaços de barganha e retrair capacidades negociadoras. No grande jogo global, a crise brasileira priva os defensores da multipolaridade e da cooperação Sul-Sul de um importante aliado. Em relação aos BRICS, reforçaria a liderança chinesa e enfraqueceria as posições e demandas brasileiras.Essas contradições tornam insustentável, em médio prazo, a manutenção desta política externa, pois fere os diversos “interesses nacionais”. Há um “desencaixe” ou “desalinhamento” entre a tentativa de reorientação internacional e as condições objetivas para que isso ocorra. As bases domésticas, grupos de interesse, burocracia e a polaridade do sistema internacional não acompanham esta reorientação nesta intensidade. Em síntese, há um desencaixe entre ideologia do Governo Bolsonaro e seus apoiadores internos e externos e o pragmatismo dos diversos interesses, em especial da burguesia interna brasileira. O resultado é que essa política externa tende a ser “amenizada” ou “temperada” internamente, para que não cause prejuízos a diversos grupos internos no país. No contexto da pandemia, e com os crescentes desgastes causados pela diplomacia bolsonarista, pressões internas e internacionais causaram a demissão do chanceler Ernesto Araújo, em março de 2021.11A política externa de Bolsonaro no contexto da pandemiaO primeiro caso de coronavírus foi confirmado no Brasil em 26 de fevereiro de 2020. Em março de 2021, atingia a marca de 12 milhões de casos e 300 mil mortos. Neste período, a política externa brasileira manteve a posição de alinhamento com a ideologia do presidente norte-americano Donald Trump, de críticas e provocações à China e negacionismo quanto ao possível impacto em número de casos e mortalidade. Depois que o próprio presidente Trump (assim como outros líderes, como Obrador no México e Boris Jonhson na Inglaterra) reviu esta posição trabalharam políticas de isolamento mais amplas, o Governo Bolsonaro tem experimentado isolamento internacional.Neste contexto, o atual negacionismo da crise do coronavírus tem como origem os líderes da extrema direita, assentada numa ideologia “antiglobalista” e sintetizada numa dupla desconfiança: com organismos internacionais e com a China. Eles veem uma ameaça em qualquer órgão da ONU, como a OMS, neste momento. Entretanto, o próprio estrategista conservador americano Steve Bannon, interlocutor e referência ideológica da família Bolsonaro no Brasil, vinha defendendo medidas de isolamento social para os Estados Unidos e ficou inclusive surpreso com a manutenção da posição brasileira. E Bolsonaro, a cada dia, foi dobrando a aposta. Reiteradamente, Bolsonaro manifesta desconhecimento e desprezo pela atividade científica, divulga informações distorcidas e mantém um comportamento de ignorar ou ironizar recomendações de “isolamento social”. Além de contrariar e forçar a demissão de ministros da saúde em plena pandemia, o Presidente critica os governadores estaduais e prefeitos que defendem isolamento social e tomaram medidas para mitigar a crise sanitária.Enquanto isso, o chanceler brasileiro Ernesto Araújo publicou, em seu Blog, no dia 22 de abril de 2020, um artigo intitulado “comunavirus”. Neste artigo, a principal preocupação do chanceler é o “vírus ideológico” do comunismo, que pode se aproveitar do coronavírus para expandir seu “projeto globalista”. De acordo com Araújo, “O vírus aparece, de fato, como imensa oportunidade para acelerar o projeto globalista. Este já se vinha executando por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio da raça, do antinacionalismo, do cientificismo. São instrumentos eficientes, mas a pandemia, colocando indivíduos e sociedades diante do pânico da morte iminente, representa a exponencialização de todos eles. A pretexto da pandemia, o novo comunismo trata de construir um mundo sem nações, sem liberdade, sem espírito, dirigido por uma agência central de "solidariedade" encarregada de vigiar e punir.” (Araújo, Chegou o Comunavírus, Blog Pessoal, 2020).ARAÚJO, Ernesto. Chegou o Comunavírus. Blog Metapolítica. https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus.A preocupação ministerial com o comunismo persistia. No dia 30 de junho de 2020, a Funag promoveu a conferência “Castro-chavismo: crime organizado nas Américas”, com Carlos Sánchez Berzaín, diretor-executivo do Interamerican Institute for Democracy. Uma conferência virtual da Funag pelo jornalista espanhol Frederico Gimenez Losantos foi intitulada “Memória do Comunismo e atualidade do vírus da mentira”, dia 14 de julho.O governo brasileiro tenta, inclusive, reproduzir o dilema norte-americano cooperação/competição com a China. Nesse contexto, o Brasil conseguiu criar três incidentes diplomáticos gratuitos com a China. Um primeiro, com Eduardo Bolsonaro publicando confusas mensagens contra a China, contestado pela embaixada da China no Brasil e agravado por uma desastrada nota do Ministro das Relações Exteriores Brasileiro. O segundo, por uma ironia, também de raciocínio e de redação confusa, do Ministro da Educação Abraham Weintraub, repelida pela embaixada chinesa como “racista”. Uma terceira, provocada novamente pelo deputado Eduardo Bolsonaro, em novembro de 2020, no qual sugeria, pelo twitter, que a China praticava espionagem através da tecnologia 5G. Três crises gratuitas que deveriam ter sido evitadas em qualquer período, mas que ganham maior gravidade com a centralidade da China, tanto na produção de insumos médicos, como na sustentação da pauta de comércio exterior brasileira.O presidente Bolsonaro tem procurado encontrar culpados pelo fracasso de sua liderança, tanto para combater a doença, quanto para mitigar as dificuldades econômicas do país nesse quadro. Nos círculos diplomáticos e na imprensa internacional, as palavras são pouco elogiosas ao presidente brasileiro. Com essa política, ao passo em que critica internamente o “isolamento social”, Bolsonaro está experimentando um isolamento político no Brasil e no exterior. O resultado disso tudo é isolacionismo brasileiro, afastamento da China e outros parceiros, e baixa capacidade de influenciar concertações regionais e globais no manejo da crise.No contexto da pandemia, no âmbito multilateral o Brasil também tem se mostrado um ator distante e opaco, seguindo de forma geral os interesses norte-americanos. O Brasil seguiu os EUA ao não endossar uma resolução da Assembléia Geral da ONU, apoiada por 179 países, que rogava cooperação internacional para combater a pandemia. O presidente Bolsonaro também tem manifestado críticas a atuação da OMS. Brasil não apoiou a proposta da Índia, apoiada pela África do Sul, feita em outubro de 2020 na OMC, para quebra de patentes temporária de produtos relacionados à pandemia. A decisão do Governo Bolsonaro foi apoiar a posição dos EUA, Europa e Japão, fazendo perder força a proposta indiana. Importante lembrar que foi uma associação entre Brasil, Índia e África do Sul que garantiu, no início dos anos 2000, quebra de patentes para produção de medicamentos genéricos a baixo custo e que é considerado na bibliografia um dos fatores para a constituição do bloco IBAS (Índia, Brasil e África do Sul).Ao se afastar politicamente dos BRICS, em especial da Índia e da China, o Brasil experimentou um isolamento na diplomacia das vacinas e tem enfrentado dificuldades no fornecimento de insumos. Essa política isolacionista pode também ter implicações no comércio exterior brasileiro: 1) afastamento político de importantes compradores, como China; 2) problemas de exportação, resultante de descontrole sanitário; 3) isolamento nas articulações multilaterais de defesa comercial. As expectativas são de uma redução do PIB global e do comércio exterior a curto e médio prazo, o que traz como previsível elevação de disputa comercial e dificuldades adicionais de exportação (ajustes em cotas, medidas sanitárias, preferências). Os países que detêm maior poder econômico e político tendem a dar as cartas nas regras e negociações comerciais, num jogo duro que exige do Brasil uma forte articulação diplomática para colocar à mesa seus interesses.O enfraquecimento e esvaziamento das instituições regionais também estão cobrando seu preço, com a ausência de uma clara, forte e determinada articulação regional (em especial do Mercosul). Não interessa ao Brasil a fragilização econômica e sanitária dos vizinhos e é necessário um papel de liderança para resguardar nossos interesses estratégicos na região. As cadeias internacionais de valor tendem a se regionalizar neste contexto, para garantir mais segurança logística.Neste contexto, as críticas à política externa de Bolsonaro já romperam publicamente os círculos de esquerda e acadêmicos, envolvendo editoriais jornalísticos, e políticos de amplo espectro ideológico e até de direita. No dia 08 de maio de 2020, foi publicado um artigo em diversos jornais, assinado por Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Resek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout, intitulado “A reconstrução da política externa brasileira”. Neste artigo, os autores, chanceleres, ministros e um ex-presidente fazem críticas contundentes à política externa de Bolsonaro, que estaria em desacordo com a constituição. O chanceler Araújo respondeu energicamente às críticas. A questão mais interessante no artigo é a conclamação do judiciário e do congresso para intervir, o que significaria mais um capítulo na crescente judicialização da vida política brasileira. Entretanto, o chanceler Ernesto Araújo se manteve no cargo até março de 2021.Diante desse contexto, a imagem brasileira no exterior se deteriorou. O Brasil é visto como descontrolado sanitariamente, com um governo negacionista em relação à pandemia, e à deriva do ponto de vista de construção de soluções. O resultado é fechamento de fronteiras e proibição de viagens desde o Brasil. Na questão do meio ambiente, há manifestações contrárias aos investimentos no Brasil, como forma de pressão.A contenção da pandemia e a reconstrução da economia regional e global nos próximos meses e anos exigirão da diplomacia brasileira a intensificação da cooperação, em especial a cooperação científica e tecnológica na área de saúde, mas também nos seus aspectos políticos e econômico-comerciais. Exigirá do Brasil também ter uma compreensão clara das mudanças no sistema internacional e suas fricções geopolíticas, para se posicionar corretamente e defender os interesses do País. Abaixo estão listadas algumas tarefas urgentes para a diplomacia brasileira:a)O Brasil, como uma potência regional, com fronteiras com quase todos os países da América do Sul, deveria estar articulando uma concertação regional, tanto para combater a disseminação do vírus quanto para mitigar seus efeitos, em especial sobre a economia regional. O Mercosul precisa trabalhar ações conjunturas de mitigação da crise sanitária e seus reflexos no comércio internacional.b)O Brasil, como uma potência emergente, deve estar engajado multilateralmente nas discussões globais sobre a crise. As instituições multilaterais e regimes internacionais devem ser espaços de articulação e buscas de consensos para a solução da crise. O Brasil tem sua carga de responsabilidade pelas suas dimensões e projeção num sistema crescentemente multipolar. Da mesma forma, os BRICS podem ser testados na sua coesão exatamente em um momento como esse.c)O Brasil, como uma potência intermediária, deve estar inserido em múltiplos pontos nodais de cooperação, tanto com os países desenvolvidos, quanto com os países mais pobres. A cooperação Sul-Sul do Brasil na área de saúde, em especial em relação aos países africanos, é um patrimônio que o Brasil pode aproveitar. A articulação IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) teve origem em uma positiva cooperação em saúde e pode ser reativada neste contexto. A cooperação científica ganha centralidade neste processo.Assim, a diplomacia brasileira está atuando num patamar muito abaixo das suas capacidades e das necessidades do país, que continua consumindo seu patrimônio diplomático e fragilizando sua inserção internacional, num rápido processo de isolamento. Tal postura poderá ter efeitos altamente nocivos para o país em curto e médio prazo.No final de março de 2021, depois enfrentar forte pressão de membros do governo e do Congresso, o ministro Ernesto Araújo pede demissão. No dia 06 de abril, o novo chanceler, Carlo Alberto Franco França, toma posse. Em seu discurso de posse, França elencou como prioridade a “diplomacia da saúde”, a “modernização da economia” e “urgência climática”. Também afirmou a necessidade de valorizar o multilateralismo e reivindicou uma diplomacia universalista. Do ponto de vista discursivo, aponta-se para uma inflexão na política externa de Bolsonaro, mas ainda cedo para definir se é apenas um ajuste ou uma mudança um pouco mais profunda, nos termos de Charles Hermann (1990).12Considerações finaisA presidente Dilma Rousseff buscou a continuidade da política externa do Governo Lula, operando a mesma matriz de inserção internacional do Brasil. Entretanto, utilizou um perfil mais discreto, evidenciado, principalmente, no menor número de viagens internacionais, em comparação com o mesmo período do Governo Lula. Utilizando menos os recursos da diplomacia presidencial, Dilma delegou para os assessores mais diretos e para o corpo diplomático a condução da política externa. Entretanto, ao utilizar para a diplomacia o mesmo modelo de gestão “de resultados” utilizado para o conjunto do governo, Dilma mantinha o controle das diretrizes da inserção internacional do país. A demanda pelas reformas no sistema internacional, a articulação com os países emergentes, o fortalecimento da cooperação Sul-Sul e uma posição de altivez e autonomia em relação às grandes potências se mantiveram no Governo Dilma. Em relação às mudanças de ênfase, a política externa de Dilma focou na redução dos danos da crise econômica internacional, cuja articulação com os BRICS e a reforma do sistema econômico internacional ganhou centralidade.Entretanto, os efeitos da crise política e econômica interna e as transformações internacionais atingiram as bases deste modelo de inserção internacional, fragilizando-o e trazendo poucos resultados. De tudo isso que foi abordado no texto, a destituição da presidente Dilma constitui um marco para a finalização da matriz de inserção regional iniciada desde o Governo Lula (2003–2010). A crise internacional, a crise política e econômica interna, as limitações da inserção de uma potência emergente periférica, bem como o giro político na América do Sul podem ser apontados como fatores, ou variáveis, essenciais para compreender as transformações matriciais da política externa brasileira. Entretanto, as indefinições da política brasileira atual e as contradições da inserção internacional do Brasil não permitem afirmar que a matriz se esgotou completamente.O governo de Michel Temer (2016–2018) marca uma mudança na matriz da política externa brasileira, ao reorientar o engajamento na América do Sul, priorizar as relações bilaterais com os países desenvolvidos e fragilizar a participação nas coalizões de geometria variável, como os BRICS. Assim, as diretrizes da política externa promovida pelo Governo Temer refletiram a conjuntura internacional, a crise brasileira e os interesses de um novo bloco de poder, que procura reorientar a política externa brasileira para uma nova matriz de inserção internacional, mas permaneceu como um período de transição.Já com o governo de Jair Bolsonaro, verifica-se uma clara inflexão matricial na política externa brasileira, com fortes significados internos e internacionais. Em uma avaliação preliminar, verifica-se que os condicionantes da mudança matricial da política externa brasileira têm como fundamentos: a) a ascensão dos movimentos e governos conservadores na América Latina e no Ocidente; b) a crítica à política externa desenvolvida na “era PT”; c) a crítica “anti-globalista” e paralisia das instituições multilaterais; d) as mudanças na política externa norte-americana sob o Governo Trump; e) a crise econômica prolongada; f) desengajamento da integração regional.Entretanto, verifica-se um “desencaixe” ou “desalinhamento” entre a tentativa de reorientação internacional e as condições objetivas para que isso ocorra. As bases domésticas, grupos de interesse, burocracia e a polaridade do sistema internacional não acompanham uma reorientação nesta intensidade. Em síntese, há um desencaixe entre ideologia do Governo Bolsonaro e seus apoiadores internos e externos e o pragmatismo dos diversos interesses, em especial da burguesia interna brasileira, deixando em aberto os contornos da nova matriz de política externa. http://www.deepdyve.com/assets/images/DeepDyve-Logo-lg.png Interacción Sino-Iberoamericana / Sino-Iberoamerican Interaction de Gruyter

De Dilma a Bolsonaro: as transformações matriciais na política externa brasileira

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References (7)

Publisher
de Gruyter
Copyright
© 2022 André Luiz Reis da Silva, published by De Gruyter, Berlin/Boston
eISSN
2747-7479
DOI
10.1515/sai-2022-0007
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Abstract

1IntroduçãoDilma Rousseff assumiu a presidência em meio a expectativas de continuidade em relação ao programa de Luís Inácio Lula da Silva. Depois de oito anos de crescimento econômico, ampliação das políticas sociais e forte inserção internacional, o Brasil assumiu um maior otimismo em relação às suas capacidades internacionais. Na política externa, esperava-se alguma reorientação, mantendo as diretrizes básicas do Governo Lula. Contudo, se a política externa de Lula gerou forte debate intelectual, com artigos, livros e seminários, a de Dilma não teve a mesma repercussão acadêmica. Com a deterioração da política doméstica, a atenção de Dilma para a política externa diminuiu ainda mais, com o cancelamento de viagens. Em abril de 2016, a Câmara dos Deputados votou pela admissão do processo de impeachment e pôs fim ao seu governo, levando a uma autodenominada reorientação da política externa brasileira.Este artigo tem como objetivo analisar as transformações da política externa brasileira recente, identificadas a partir do conceito de matriz de inserção internacional. Neste sentido, na perspectiva de compreender as grandes linhas de ruptura e continuidade da política externa brasileira na ultima década, utilizou-se, como recurso analítico, a noção de matriz de política. Ricardo Sennes defende o uso desta noção, argumentando que ela possibilita trabalhar com um enfoque e um distanciamento que não localizam, necessariamente, linhas divisórias da política externa, definidas apenas pelos mandatos presidenciais, possibilitando, como isso, novas possibilidades interpretativas. Para o autor, “A noção de matriz diz respeito aos contornos mais gerais da política externa de um país e busca determinar a forma pela qual ele concebe a dinâmica do sistema internacional” (Sennes, 2003, p.36).Assim, o esforço para identificar a matriz sobre a qual se baseia a política externa de um país implica traçar uma linha condutora e articulada de vários elementos que compõem sua inserção internacional. Pressupõe, principalmente, ordenar de forma inteligível vários fatores de natureza distinta que interagem na determinação da política externa. Nesse sentido, a noção de matriz procura os condicionamentos e opções estruturais, que tendem a sofrer mudanças em tempos mais dilatados do que os governos em períodos democráticos e regimes presidencialistas (Sennes, 2003, p.37). Por outro lado, a noção de matriz permite realizar uma pesquisa que ganha mais possibilidades analíticas, ao interrogar sobre as permanências e rupturas da política externa de sucessivos governos. Nesse sentido, esta perspectiva interpretativa permite trabalhar a hipótese desta pesquisa, de que a matriz da política externa brasileira de inserção internacional da primeira década do século XXI vem apresentando dificuldades e ajustes desde o Governo Dilma, reestrururação desde o Governo Temer, mas cuja mudança ganhou contornos mais nítidos com a ascensão do Governo Bolsonaro.Visando a promover um debate amparado teoricamente sobre a política externa do primeiro mandato de Dilma, busca-se analisar seus condicionantes e explicitar sua racionalidade. Já em relação ao segundo mandato, o processo de impeachment da presidente Dilma, concluído em 2016, também reforça a necessidade de uma análise de sua repercussão na política externa brasileira. Da mesma forma, reforça a problematização da destituição da presidente Dilma como marco para a finalização da matriz de inserção regional iniciada desde o Governo Lula (2003–2010). A partir do Governo Michel Temer (2016–2018) estaria em estruturação uma nova matriz de inserção internacional, com contornos mais claros no Governo Bolsonaro (2019 em diante).Assim, a importância desta pesquisa reside precisamente em oferecer uma análise dos condicionantes das transformações da política externa brasileira. Da mesma forma, pode oferecer subsídios para a compreensão dos dilemas e desafios da inserção internacional do Brasil, seus limites e possibilidades, em um contexto de crise e transformação da matriz de inserção internacional na segunda década do século XXI.2As transformações na Política Externa Brasileira sob o Governo DilmaAs análises sobre a política externa de Dilma apresentaram variações comuns nos principais veículos de comunicação brasileiros, majoritariamente críticos à política externa “ativa e altiva” de Lula e do ministro Celso Amorim, enquanto houve poucos trabalhos acadêmicos exclusivamente dedicados a ela (Cervo & Lessa, 2014; Cornetet, 2014; Jesus, 2014; Pecequilo, 2014; Saraiva, 2014; Saraiva & Gomes, 2016; Souza & Santos, 2014). Na mídia, houve inicial comunhão de interpretações sobre um novo rumo que a diplomacia brasileira tomaria em 2011. Supostamente sinalizada por entrevista da presidenta ao The Washington Post (Weymouth, 2010), com divergências a algumas posições do antecessor, em particular sobre direitos humanos, a mudança foi recebida com certa euforia pelos críticos de Lula.As expectativas iniciais de opositores focavam nas primeiras decisões de Dilma em discussões de direitos humanos e suposto retorno ao predomínio do Itamaraty na formulação da política externa (Engstrom, 2012). Contudo, a expectativa de grandes alterações na diplomacia e apostas em uma reaproximação com os Estados Unidos, proposta por defensores de uma inserção focada no Norte, não se concretizaram. Logo, o “consenso” apontou para a simples continuidade da política externa com relação à de Lula, criticando o que denominam “tendências ideológicas e partidárias” (Barbosa, 2014).Aos poucos, uma nova interpretação sobre a diplomacia de Dilma ganhou força na mídia, parcialmente reproduzida em artigos acadêmicos: um recuo ou retraimento diplomático. Críticos e defensores de Lula apontaram um reduzido interesse da presidenta pelo tema e uma concentração das decisões da área na presidência e em sua assessoria especial para assuntos estrangeiros, alijando o Itamaraty (Stuenkel, 2014). Reflexões sobre a nova conjuntura econômica e política internacional foram escassas, mas compartilham a percepção de um ambiente desfavorável, ainda que se priorize a atribuição de causalidade aos fatores domésticos e à personalidade da presidenta. Ainda, identifica-se, no conjunto de análises, forte viés normativo e prescritivo, oriundo certamente da perplexidade diante de algumas opções internacionais.3A redefinição das prioridades internacionais durante o Governo DilmaA visão do governo brasileiro era de que o sistema internacional estava passando por um processo de redistribuição de poder nas relações internacionais, se encaminhando para um sistema multipolar. Por outro lado, o cenário internacional estava caracterizado por uma crise econômica que atinge todos os países, por conflitos regionais em diversos pontos do globo e por desafios ambientais (Rousseff, 2012). A comunidade internacional não estaria conseguindo lidar com esses problemas, sendo, portanto, imperativa uma reforma nos mecanismos de governança global, tanto econômicos e financeiros como políticos e securitários. Para solucionar esses dilemas, o governo brasileiro entendia que o multilateralismo deveria ser fortalecido, tanto no sentido de aumentar o diálogo entre os polos consolidados e emergentes, como no sentido de promover um multilateralismo inclusivo, com maior representatividade para países menores e mais pobres (Patriota, 2011). Destaca-se a necessidade do fortalecimento da ONU a fim de que essa possa desempenhar um papel central para a consolidação da ordem multipolar (Rousseff, 2012).Nesse contexto, o Brasil se apresenta como uma das principais economias do mundo, tornando-se um interlocutor indispensável nos debates acerca dos temas centrais da política mundial (Patriota, 2011). O Brasil encontra-se em processo de estabelecimento de um “novo modelo de desenvolvimento com inclusão social e consciência ambiental”, que inclui em sua ação externa a busca por parcerias para o avanço em ciência, tecnologia e inovação, ampliando o contato com o setor privado e com a sociedade civil. O Brasil passa pelo seu maior período de estabilidade democrática, com consolidação de suas instituições, com taxas sustentáveis de crescimento econômico e de produção e com mercado interno aquecido, a despeito da crise mundial. Portanto, acredita-se que essa seria a primeira oportunidade real de o Brasil se tornar um país desenvolvido (Rousseff, 2011). Internamente, apesar dos inúmeros avanços necessários para a formação de um país socialmente justo, obtiveram-se conquistas na área de “direitos humanos, na valorização da cidadania, na modernização da atividade econômica, na promoção de um desenvolvimento mais justo e ambientalmente sustentável” (Patriota, 2011).A inserção internacional do Brasil articularia dois interesses principais: (1) o aprofundamento da integração sul-americana como prioridade; (2) a ampliação da presença brasileira em escala global. Assim, identificam-se como os principais interesses estratégicos do Brasil no mundo: a) consolidar e ampliar a integração econômica, política e física sul-americana, tendo o Mercosul como núcleo duro, fortalecido pela Unasul; b) fortalecer os laços latino-americanos e caribenhos em um sentido mais amplo, através da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos); c) projetar o continente sul-americano como um pólo importante no mundo multipolar que se anuncia; d) estreitar relações diplomáticas e abrir novos canais de diálogo político e de cooperação com África, Ásia e Oriente Médio; e) fortalecer e consolidar parcerias e a concertação com os principais países emergentes, tanto no âmbito bilateral como multilateral, como IBAS e BRICS; f) manter seus tradicionais laços com os países desenvolvidos, tornando-os mais equilibrados; g) consolidar a ordem multipolar, fortalecendo laços com os polos já consolidados, mas promovendo um multilateralismo inclusivo, com representação para países menores e mais pobres; h) fortalecer o multilateralismo e suas instituições, em especial a ONU; i) reformar os mecanismos de governança global para refletir a realidade geopolítica atual e não as assimetrias do passado, j) tornar-se um membro permanente no Conselho de Segurança da ONU; k) inserir-se nos principais debates da política internacional; l) inserir o tema do desenvolvimento e do combate à pobreza nos debates multilaterais, junto a temas ambientais; m) combater as assimetrias da economia e do comércio mundiais para garantir a competitividade da indústria nacional e do setor agroexportador; n) priorizar ciência, tecnologia e inovação como meios para a ascensão a um novo estágio de desenvolvimento; o) proteger brasileiros no exterior (Rousseff, 2012). Dessa forma, as prioridades da política externa no Governo Dilma representam uma continuidade do Governo Lula, com uma ênfase nos fóruns multilaterais.4As transformações na atuação multilateral no Governo DilmaNa posse de Figueiredo, Dilma reiterou que “[o] Brasil acredita no multilateralismo como única forma eficiente de produzir consensos estáveis no âmbito internacional” (Rousseff, 2012). Ademais, defendeu fortemente o multilateralismo em todos os seus discursos de abertura da Assembleia-Geral da ONU. De acordo com Amorim (2013), então Ministro da Defesa, o multilateralismo é o garantidor, ou seja, o “sustentáculo político-jurídico” da multipolaridade.Em 2011, o brasileiro José Graziano foi eleito diretor-geral da FAO, tendo sido reeleito. Em 2012, o Brasil foi eleito pela terceira vez, com 184 votos, para ocupar um dos 47 assentos do Conselho de Direitos Humanos da ONU. No Conselho de Segurança, o Brasil foi eleito membro rotativo pela última vez no biênio 2010–2011. Em 2014, o País foi convidado a participar da Conferência Internacional sobre a Síria (Genebra II), em Montreux, tendo Dilma recebido críticas por ter enviado apenas o secretário-geral do Itamaraty (Mello, 2014).Apesar de manter a defesa de reforma do Conselho de Segurança, o Governo Dilma percebeu uma conjuntura ainda menos propícia a mudanças importantes no multilateralismo, tendo em vista a crise de 2008. Ocupando ainda um assento rotativo em 2011, o Brasil defendeu soluções multilaterais para conflitos e uso da força apenas para defender o mandato específico da ONU (Cervo & Lessa, 2014), especialmente durante as discussões sobre a guerra na Líbia. Dessa forma, uniu-se a Alemanha, China, Índia e Rússia contra a intervenção armada, abstendo-se da criação de zona de exclusão aérea, cuja resolução teve o mandato extrapolado, ensejando críticas sobre direitos humanos.Em 2011, Dilma apresentou o conceito de responsabilidade ao proteger (RwP), buscando balizar a responsabilidade de proteger (R2P). Nesse sentido, o Brasil demonstrou sua posição no que se refere a intervenções internacionais, ressaltando a ideia – presente entre os princípios da ONU – de não causar dano maior que o que se busca combater. A contribuição conceitual foi recebida com misto de entusiasmo e ceticismo, com qualificações do conceito como vago, também aplicável à R2P segundo Foley (2012). De qualquer forma, ao enunciar o termo, o Brasil demonstrou sua preocupação com as motivações políticas e os possíveis efeitos nefastos de intervenções humanitárias, buscando ter uma participação mais ativa na agenda de segurança internacional (Foley, 2012).A proposta foi um marco na produção normativa sobre R2P, propondo critérios para intervenções, um mecanismo de monitoramento e revisão para avaliar mandatos do Conselho, e renovada atenção à construção de capacidades para evitar crises. Dois problemas se colocaram à relevância e efetividade da RwP: resistência de alguns países em responsabilizar-se mais com accountability, avaliação e prevenção, e baixa prioridade assumida na agenda brasileira, tendo legado uma maior elaboração do conceito à comunidade internacional (Welsh et al., 2013).A agenda comercial multilateral sofreu importantes reveses no Governo Lula, tendo o empenho de Amorim na Rodada Doha esbarrado em resistências nas negociações do QUAD (EUA, União Europeia, Brasil, Índia) em 2008 (Amorim, 2015), culminando na paralisação das negociações. A presidenta, contudo, manteve a defesa de solução multilateral para a liberalização comercial, percebendo as ameaças de acordos bilaterais assimétricos (Paraguassu, 2013). Em 2013, a reunião ministerial em Bali deu novo fôlego à Rodada. O Acordo de Facilitação do Comércio, parte do Pacote de Bali, primeiro acordo após 2008, entrou em vigor em 2017 e abriu caminho para novos acordos em Nairóbi em 2015.Atribuindo importância à OMC, o Brasil promoveu a candidatura de Roberto Azevêdo à direção-geral, eleito em 2013, fruto da trajetória brasileira na organização. Além disso, a política comercial brasileira fez uso recorrente do sistema de solução de controvérsias, como no recurso contra medidas desleais estadunidenses contra a exportação de suco de laranja (Brasil, 2012). Deu-se continuidade à denúncia dos subsídios estadunidenses ao algodão, após suspensão do pagamento de reparações, com uma solução acertada em 2014 (Pecequilo, 2014).Nas discussões ambientais, manteve-se a defesa dos interesses do Sul contra obstáculos ao desenvolvimento impostos por determinadas decisões. A Rio+20, em 2012, contou com 193 delegações – sem, contudo, grandes poluidores, como EUA, Reino Unido e Alemanha. Buscou-se, com sucesso, incluir a questão da pobreza na declaração final. Ainda, manteve-se a coalizão BASIC – Brasil, África do Sul, Índia e China – com reuniões ministeriais, e houve importantes declarações de intenção sobre redução da emissão de gases causadores do efeito estufa até 2020 (Cervo & Lessa, 2014). Em 2015, o Brasil foi um importante articulador do Acordo de Paris, que deu novo rumo à luta contra o aquecimento global.Souza e Santos (2014) buscam identificar traços definidores da diplomacia de Dilma e suas continuidades e descontinuidades em relação a Lula, analisando seus discursos na Assembleia Geral. Eles concluem haver uma manutenção das diretrizes de Lula em temas econômicos e sociais e a adoção de inovações e de linhas levemente diferenciadas em questões de gênero e segurança internacional. As posições de Dilma no multilateralismo mantiveram as linhas gerais traçadas por Lula. Apesar de reduzido espaço para atuação e seus escassos avanços, percebe-se que o País procurou avançar as ideias-força antecessoras acrescendo elementos novos, como o RwP. Nas discussões comerciais, colheram-se frutos da atuação prévia. Ainda, a eleição do Brasil para órgãos do sistema ONU demonstrou a manutenção de anseios por maior representação, ainda que sem avanços em sua reforma.5IBAS, BRICS e a Cooperação Sul-SulNo âmbito das iniciativas diplomáticas com outros grandes países emergentes, o Governo Dilma manteve os dois grupos de concertação criados no Governo Lula: IBAS e BRICS. O IBAS enfrenta importante desafio: ausência de cúpulas presidenciais desde 2011, após a presidenta ter cancelado sua participação na cúpula de 2013, e o governo sul-africano ter preferido não realizar reunião logo antes da cúpula do BRICS de 2014. A iniciativa mantém seus encontros ministeriais, fóruns setoriais e as atividades do Fundo IBAS. Uma das possíveis explicações para essa situação é ser o IBAS secundado pelo BRICS, principalmente após a inclusão da África do Sul neste em 2011.De fato, o BRICS foi um dos mais importantes veículos de atuação da diplomacia de Dilma. Pode-se dizer que houve manutenção e aprofundamento da estratégia de Lula de soft balancing via BRICS (Flemes, 2010). Mantendo o tom crítico à configuração do sistema internacional e às assimetrias institucionais, Dilma viu no agrupamento um instrumento para defender suas pautas. Em 2014, o BRICS aprovou a criação de duas instituições: Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e Arranjo Contingente de Reservas (ACR), demonstrando que suas competências ultrapassam sua concepção original (Lima, 2015).O NBD é a primeira instituição com personalidade jurídica internacional do grupo. Prevendo o financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em países em desenvolvimento, seu intuito é complementar as funções do Banco Mundial. Ainda, ele foi planejado para permitir a inclusão de novos membros do Sul, mas manter seu controle pelos fundadores. O ACR, proposta brasileira de auxílio em crises financeiras, complementar ao FMI, visa prover apenas os membros com divisas de acordo com suas capacidades contributivas e necessidades de apoio. Apesar de divergências, o BRICS vem tratando cada vez mais temas, como crises regionais, e cooperando em diversas frentes (Lima, 2015).A cooperação Sul-Sul foi uma das bandeiras mais defendidas pela política externa de Lula, sendo marca de sua inserção internacional. Dilma manteve a estratégia de articular as dimensões econômicas, políticas e sociais, conferindo grande peso à social no âmbito externo. Assim, a cooperação foi mantida como elemento prioritário na agenda internacional, defendida desde a posse. Aponta-se para uma intensificação das iniciativas para os vizinhos, enquanto outras regiões, embora ainda nomeadamente prioritárias – África e Oriente Médio – tenham sido mais afetadas por cortes orçamentários (Milani & Carvalho, 2013).6Relações regionais e com os Estados UnidosEm 2012, durante o processo de revisão da política externa, Patriota afirmou que Dilma manteria sua âncora regional, procurando promover a preservação da paz e da democracia no continente. O chanceler reforçou a importância dos vizinhos enquanto parceiros comerciais (Oliveira & Celestino, 2012). Após a ausência de Dilma (além de Kirchner e Chávez) na reunião de cúpula da Unasul, em Lima, em 2012, contudo, surgiram críticas ao que foi interpretado como um distanciamento da presidenta da região (Carmo, 2012).Juan Tokatlian (2014), ao analisar a Unasul, apesar de reconhecer suas importantes conquistas – sobretudo sua assertividade diante de crises políticas em seus membros –, qualifica-a como errática e desprovida de estratégia clara e liderança forte. Entre os fatores causadores dessa falta de orientação estaria a menor relevância atribuída pelo Governo Rousseff. Maria Regina Soares de Lima, em entrevista, identificou continuidade, mas falta de inovação na diplomacia de Dilma para a América do Sul. Com a retração da ação externa brasileira em meio à crise doméstica, iniciativas para América Central e Caribe perderam fôlego, e a atuação das empresas brasileiras perdeu o apoio do BNDES em meio aos escândalos de corrupção (Saraiva & Gomes, 2016).A maior alteração no Mercosul no período foi a adesão da Venezuela, em 2012, que dependia da aprovação do Senado paraguaio. Durante a suspensão paraguaia por sua ruptura institucional, apoiada na cláusula democrática do Mercosul, a Venezuela foi admitida como membro pleno. No Brasil, noticiou-se que o Itamaraty teria sido contra a permissão de entrada à Venezuela naquele momento (Cantanhêde, 2012). Ainda, a Bolívia solicitou adesão, e Guiana e Suriname se associaram ao bloco (Saraiva & Gomes, 2016). A suspensão venezuelana em 2016 por não se adequar aos parâmetros do MERCOSUL põe em cheque a expansão do período Dilma.Apesar das críticas ao Mercosul, sobretudo após a criação da Aliança do Pacífico (2012) e durante o período eleitoral (2014) por sua suposta estagnação, a corrente comercial brasileira com o bloco segue importante (Marreiro, 2014). Ademais, houve avanço nos investimentos do Fundo de Convergência Estrutural, sobretudo no Paraguai, que reingressou no bloco em 2013. As relações com Argentina e Uruguai, sob as presidências de Kirchner e Mujica foram bastante positivas. O Brasil se manteve o principal parceiro comercial argentino (Jesus, 2014), apesar da crescente concorrência chinesa, e estabeleceu um novo paradigma nas relações com Montevidéu, visando incrementar a cooperação bilateral em diversas áreas (Giraldi & Aquino, 2012).Em relação aos EUA, as primeiras manifestações da presidenta foram recebidas pela mídia como o início de uma reaproximação com os Estados Unidos após as tensões que sucederam a Declaração de Teerã. Contudo, a maior parte das divergências no relacionamento bilateral persistiu no primeiro mandato de Dilma. Pecequilo (2014) percebe uma continuidade na política brasileira e no respeito mútuo, após a conquista de Lula de aceitação por parte de Washington de uma posição autônoma, e muitas vezes discordante, do Brasil em relação aos EUA. As pressões internas por alinhamento, simpáticas à política externa dos anos 1990, foram frustradas pela manutenção do que Pecequilo (2014) chama de “diversificação e acomodação”. Enquanto promovia a institucionalização do “diálogo da parceria global” e iniciativas de cooperação trilateral, Dilma manteve as disputas comerciais.Pecequilo (2014) aponta um segundo momento das relações bilaterais: “distância, repensamento e estagnação” (2013–2014). A inflexão entre os períodos é marcada pela descoberta da espionagem estadunidense ao governo brasileiro, a empresas brasileiras e à própria presidenta. Em resposta, Dilma cancelou viagem marcada aos Estados Unidos e iniciou campanha, posteriormente apoiada pela Alemanha, pelo estabelecimento de regime internacional de governança da Internet. Aprovou-se domesticamente o marco civil da rede, que regulamenta a privacidade, a inviolabilidade, o sigilo, a neutralidade, entre outras condições de utilização (Jungmann, 2014).A presidenta buscou fortalecer sua posição, diversificando ainda mais as parcerias, como demonstram o leilão do campo de libra e a compra dos caças suecos Gripen. De forma geral, o Governo Dilma manteve o tom do relacionamento com Washington: demanda por respeito à autonomia brasileira e algumas tensões sobre comércio e segurança, principalmente. Essa posição parece ser corroborada pelo esforço estadunidense em se reaproximar do Brasil, como a visita do vice-presidente, Joe Biden, em 2014, demonstrou. Entretanto, as denúncias de espionagem por parte dos EUA, que vieram a público em 2015, dificultaram a proposta de aproximação bilateral.7O Governo Dilma e a crise brasileiraA política externa brasileira desde o início do século XXI se estruturou sobre uma nova matriz de inserção internacional, que constitui a superação do modelo de inserção internacional do país dos anos 1990. A nova matriz de política externa teve como principais características o aprofundamento da integração regional (seguido de uma mudança de enfoque), a retomada da tradição multilateral do Brasil, um novo perfil crítico das relações assimétricas entre os Estados, a busca de parcerias estratégicas com países similares em todos os continentes e uma reaproximação aos países subdesenvolvidos, bem como a manutenção de relações com os países desenvolvidos. Além disso, verifica-se a retomada de uma ofensiva diplomática através da construção de uma agenda de temas sociais. Essa foi a base da atuação do Governo Lula em seus dois mandatos (2003–2010) e permaneceu na política externa do Governo Dilma (2011–2016), embora com ajustes.Entretanto, assume-se que o Governo Dilma sofreu um processo de desgaste e crise dessa matriz, em função das mudanças sistêmicas internacionais e da conjuntura doméstica. Em especial a partir de 2015, política brasileira vivenciou uma disputa intensa. A pauta nacional dominou a política brasileira, desde que a vitória eleitoral apertada, associada aos reflexos da crise econômica e as impactantes denúncias de corrupção, encorajou a oposição a não encerrar o debate eleitoral de 2014. A obstrução da pauta nacional revela os impasses do “presidencialismo de coalizão”, cujo desfecho foi o processo de impeachment (Svartman & Silva, 2016).Por outro lado, o cenário internacional vem demonstrando dificuldades para a inserção internacional das potências médias e emergentes, como o Brasil, com a retomada do crescimento econômico das grandes potências e a transferência (ao menos parcial) da conta da crise para os países em desenvolvimento. Neste contexto, o otimismo deu lugar novamente ao pessimismo, abrindo espaço para um revisionismo. Esse revisionismo, embora eivado de críticas à política externa brasileira, não constitui essencialmente em um revisionismo crítico, pois ignora bases estruturais na análise. A questão a ser formulada parte de outras premissas, em especial como e para quem determinada política foi formulada.A história da política externa brasileira esteve sempre fortemente ligada ao seu modelo de desenvolvimento. Utilizando a nomenclatura de Amado Cervo (2008), pode-se identificar que os grandes paradigmas organizam a inserção internacional do Brasil, e estão fortemente ligados ao modelo de desenvolvimento (agrário, desenvolvimentista, neoliberal, logístico). O paradigma logístico seria a síntese superior dos paradigmas desenvolvimentista e neoliberal, recuperando a capacidade do Estado em promover o desenvolvimento econômico e social em uma nova conjuntura da globalização.Entretanto, neste contexto, o último estágio, o logístico, em vigor desde a virada do milênio, apesar de suas realizações, se fragilizou. Baseado fortemente na interação internacional das “grandes campeãs” nacionais e de uma crença excessiva nas virtudes do empresariado nacional moderno e progressista, os reflexos da crise econômica atingiram fortemente a capacidade estatal e as bases de apoio nacional. Neste cenário, alguns dos representantes do Estado Logístico sofreram processo de investigação, por denúncias de corrupção. Desde então, as forças conservadoras, os neoliberais, os setores rentistas, entre outros, engrossaram o coro de críticas ao projeto de desenvolvimento construído na primeira década do século XXI, que buscava superar as históricas vulnerabilidades através do desenvolvimento econômico e social e de uma inserção internacional mais altiva. O impasse interno refletiu na política externa.É inegável que a política externa do Governo Dilma teve escopo e resultados bem mais modestos que do Governo Lula. Mas também é inegável que existem causas estruturais e conjunturais que ajudam explicar esta situação. O “retraimento” da política externa brasileira, sob Dilma, tem como fundamentos: a) certo esgotamento do “ativismo diplomático” brasileiro desenvolvido na Era Lula; b) crise ou paralisia das negociações multilaterais (OMC e ONU); c) dificuldades econômicas em manter a cooperação Sul-Sul em patamar elevado; d) crise interna brasileira, tanto de ordem econômica como política; e) reflexos da primavera árabe, que alterou o jogo de forças na região e bloqueou algumas iniciativas para Oriente Médio e Norte da África; f) mudança contextual da América do Sul, fragilizando a integração. As iniciativas brasileiras no sistema internacional foram se escasseando. A proposta “Responsabilidade ao Proteger” (RWP) em oposição ao “Responsabilidade de proteger” (R2P) foi objeto de um painel na ONU, mas em seguida acabou não avançando. As propostas da Rio+20, realizada no Brasil em 2012, tiveram dificuldades de implementação. As viagens internacionais foram escasseando e com baixa inovação. Desde 2015, a agenda interna e depois o processo de impeachment absorveu as preocupações do Governo, impossibilitando uma agenda externa mais propositiva (Svartman & Silva, 2016).8Temer e a “nova política externa” do Brasil: transição para nova matriz de inserção internacional?Em 12 de maio de 2016, com a abertura do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff pelo Senado, o vice Michel Temer assumiu como presidente interino e iniciou uma nova política interna e externa. Para o Ministério das Relações Exteriores, foi indicado José Serra, um experiente político vinculado ao PSDB, que havia sido ministro no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995–2002). No seu discurso de posse, em 18 de maio, o ministro apresentou dez diretrizes que guiariam a nova política externa brasileira sob seu comando. Essas diretrizes significaram o desmonte da política externa brasileira desenvolvida desde 2003, pela gestão Lula, e, em alguns casos, inclusive a mantida por Fernando Henrique Cardoso e por governos anteriores, anunciando mudança matricial na política externa brasileira.Em síntese, Serra prometia uma política externa “que não está a serviço de uma ideologia”, responde aos países bolivarianos as críticas ao processo de impeachment e indica que o Brasil deve se afastar dos países em desenvolvimento nas negociações sobre o meio ambiente e mudanças climáticas. Trata da necessidade de reformas no sistema internacional, mas não reivindica claramente um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Critica a atuação brasileira nos fóruns multilaterais de comércio e defende a multiplicação de acordos bilaterais. Também demonstrou interesse em “flexibilizar o Mercosul” e avançar em negociações com a Aliança do Pacífico. Reforçou a ideia de que o Brasil tem de se aproximar dos países ricos (EUA, Europa e Japão) e da China e repensar as prioridades da cooperação Sul-Sul. Prevê, igualmente, a revisão da política africana do Brasil. Sobressai ainda a ideia de que a atuação estaria orientada para o estabelecimento de parcerias comerciais.Embora a política externa brasileira tenha como tradição evitar mudanças bruscas, em outros momentos já se verificou uma reorientação externa mais incisiva. Talvez uma das mais dramáticas tenha sido na época do golpe civil-militar, em 1964, quando a Política Externa Independente desenvolvida por Jânio Quadros e João Goulart foi desmontada e substituída por uma política externa “interdependente”, dependente e subordinada aos EUA, e recuada em suas pretensões globais. O desengajamento internacional foi tão grande que os próprios militares posteriormente promoveram uma nova revisão, resgatando pontos da Política Externa Independente.Em março de 2017, o chanceler José Serra pediu demissão do cargo de Ministro das Relações Exteriores, com a justificativa de problemas de saúde. Para substituí-lo, assume Aloysio Nunes, também Senador da República e com uma trajetória semelhante à de José Serra. Ex-guerrilheiro no período da Ditadura Militar, exilado, filiado ao PSDB, e também com base política em São Paulo. José Serra vinha se desgastando no Ministério, e havia sinais de que o Temer desautorizou algumas de suas iniciativas e ideias. Na Assembléia Geral da ONU em 2016, Temer afirmou que “a integração latino-americana estava acima dos interesses ideológicos” e também de que reafirmava a candidatura do Brasil a uma vaga no Conselho de Segurança. Embora se esperasse alguma inflexão na substituição de Serra na Chancelaria, o fato é de que na prática o MRE continuou com a mesma política.As críticas a política externa do Temer se acirraram inclusive dentro do Ministério das Relações Exteriores. O desconforto foi expresso no manifesto de jovens diplomatas sobre a política externa brasileira, algo incomum num corpo burocrático com alto grau de disciplina e hierarquia. Neste contexto, o chanceler Aloysio Nunes buscou fazer pequenas correções de rumo, buscando um perfil mais discreto para o Itamaraty, mas mantendo a agenda e o “desengajamento estratégico” iniciado por José Serra. Um ponto alto deste desengajamento ocorreu em abril de 2018, com o anúncio feito pelo Brasil (juntamente com Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Paraguai) de suspender sua participação na Unasul.9O (des)engajamento regional com o Governo TemerA face mais visível da política externa de Temer-Serra tem sido o entorno regional. Sua atuação para a América do Sul, inferida a partir de seus discursos recentes, tem como diretrizes: a) responder duramente e atacar os críticos do processo de impeachment; b) trabalhar para a construção de um bloco liberal e antiprogressista na região; c) rebaixar o Mercosul a uma área de livre comércio para facilitar acordos bilaterais extrarregionais; d) revisar a política externa brasileira em relação aos governos de esquerda e ao tratamento de questões regionais. O Governo Temer também fortaleceu a ideia de se desvencilhar do Mercosul para facilitar acordos de livre comércio de forma bilateral (Silva & Perez, 2019).A reação internacional ao governo interino no Brasil foi de frieza e desconfiança, praticamente a mesma quando se confirmou o Impeachment. Na América do Sul, a maioria dos países buscou distanciamento do novo governo, ou ao menos se posicionou mais claramente. Já no Mercosul, enquanto Argentina e Paraguai saudaram-no, o Uruguai demonstrou uma discreta postura cética, e a Venezuela foi mais incisiva em suas críticas. A resposta brasileira tem sido de duras críticas à Venezuela, inclusive buscando questionar e rever sua participação no Mercosul e impedindo que esta ocupe a presidência pro tempore do bloco. Em 2017, com o acirramento da crise venezuelana, o posicionamento brasileiro tem sido de criticar o governo e isolar o país, o que inviabiliza a possibilidade de atuação do Brasil como mediador do conflito, o que seria um papel esperado de uma liderança regional. O posicionamento brasileiro e o acirramento da crise venezuelana, sobretudo após as eleições para uma nova Assembléia Constituinte, abrem espaço para que o presidente norte-americano afirme, sem contestação brasileira, de que seria possível uma intervenção militar dos EUA na Venezuela.Convém ressaltar que as censuras à Venezuela eram basicamente ideológicas, pois sua participação no Mercosul é vantajosa para o bloco, em especial para o Brasil, que é superavitário em relação àquele país, tendo uma economia complementar. De fato, a nova posição do Brasil em relação aos países sul-americanos e ao Mercosul incorre em uma série de erros estratégicos – contrariando a experiência e os interesses do país na região – quando acredita que a Argentina neoliberal se aproximará do Brasil neoliberal e que posição de “força” tem eficácia sobre os países vizinhos. O efeito costuma ser o contrário.Ao contrário do que se imagina, não é a coincidência de regimes que aproxima Brasil e Argentina, mas o quanto o governo argentino quer balancear o poder americano ao buscar uma aproximação. O neoliberalismo na Argentina tende a afastá-la do Brasil. Do mesmo modo, a cordialidade oficial no trato com os vizinhos é regra básica, e as posições ásperas do Ministro das Relações Exteriores contradizem a experiência histórica, isolam o Brasil e desmontam a estratégia da integração sob a liderança brasileira.Já o Mercosul funciona como uma reserva de mercado para os produtos industriais brasileiros na região. Dessa forma, não constitui interesse brasileiro um caminho solitário, desvencilhando-se dos vizinhos para alcançar acordos bilaterais fora do continente. Essa estratégia pode parecer sedutora, mas poderia acarretar a perda de importantes mercados para produtos industriais brasileiros, bem como abrir ainda mais a região para competidores extrarregionais. Tradicionalmente, a política externa em relação ao entorno regional tem como base o Mercosul e a integração sul-americana, criando um espaço para o exercício de liderança e credenciando o Brasil para atuação mais assertiva em fóruns globais. Entretanto, o caminho escolhido por Temer corre o risco de destruir um patrimônio diplomático duramente construído nas últimas décadas (Silva & Perez, 2019).Em relação à integração “física” Sul-Americana – IRSA, Temer também teria de lidar com o processo de integração física, com muitas obras em andamento e que inclusive foram incluídas no PAC. A incapacidade momentânea das empresas de infraestrutura pode abrir espaço para multinacionais norte-americanas, européias e até chinesas. O desengajamento abre espaço para o fortalecimento das potências estrangeiras e suas empresas na região. O Brasil, nesse sentido, desce um degrau na escala do comportamento esperado das potências médias, que constitui em buscar resguardar a região para sua própria influência.10As transformações matriciais da política externa e o Governo BolsonaroAs eleições de 2018 foram marcadas pela disputa aguda de projetos políticos diferenciados, em muitos casos antagônicos. Embora a política externa brasileira não figure como tema central nos assuntos eleitorais, estava também em jogo posicionamentos sobre as escolhas, decisões e prioridades nesta área. Jair Bolsonaro foi eleito apoiado por uma frente neoconservadora, reunindo neoliberais do setor empresarial, grupos religiosos (em especial neoevangélicos), militares, “olavistas”, agronegócio, setor financeiro e agronegócio. O plano de governo e as ações dos primeiros dois anos do Governo Bolsonaro apontam para uma reorientação da política externa brasileira, nos termos propostos por Charles Hermann (1990). Para o autor, os principais drivers de mudança de uma política externa podem ser encontrados na liderança, na burocracia, no contexto interno e no contexto internacional.De fato, o Governo Bolsonaro propôs uma mudança profunda de orientação internacional, e escolheu como chanceler um diplomata de carreira (Ernesto Araújo) adepto dessa reorientação (Frenkel, 2019). Seu eleitorado também está de acordo com essa reorientação, em linhas gerais, e o contexto internacional sofreu modificações, com aumento do conservadorismo, em especial a América Latina, e a crise do multilateralismo, provocado por impasses e críticas dos governos “antiglobalistas”. Nesse sentido, verifica-se um impulso por mudança matricial na política externa brasileira, patrocinado pela coalizão de apoio ao Governo Bolsonaro e estimulado por um contexto regional mais conservador.Assim, com o Governo Bolsonaro verifica-se uma inflexão matricial na política externa brasileira, com fortes significados internos e internacionais. Em uma avaliação preliminar, verifica-se que os condicionantes da mudança matricial da política externa brasileira têm como fundamentos: a) a ascensão dos movimentos e governos conservadores na América Latina e no Ocidente; b) a crítica à política externa desenvolvida na “era PT”; c) a crítica “anti-globalista” e paralisia das instituições multilaterais; d) as mudanças na política externa norte-americana sob o Governo Trump; e) a crise econômica prolongada; f) desengajamento da integração regional.Do ponto de vista bilateral, a nova matriz de política externa busca aproximação dos países desenvolvidos e um afastamento dos países em desenvolvimento. Também seleciona ideologicamente as parcerias, procurando aproximação com países cujos governos expressem posições da direita. O Governo Bolsonaro também busca uma aproximação acrítica aos EUA, identificado como o baluarte da “defesa dos valores ocidentais”. A cooperação Sul-Sul é vista com desconfiança, ao passo em que o Brasil se afasta do Oriente Médio e da África.Em relação aos fóruns multilaterais, o Governo Bolsonaro prega o afastamento dos regimes internacionais e compromissos assumidos pelo Brasil. Identificados como agenda “globalista marxista”, os regimes ambientais, migratórios e de direitos humanos são criticados, como de renúncia aos interesses do Brasil. Da mesma forma, o Governo Bolsonaro identifica o mundo como unipolar ou bipolar e renega as tendências multipolares do sistema internacional.A política regional de Bolsonaro aponta para um desengajamento nos processos de integração, com críticas ao Mercosul e Unasul. Por outro lado, lança mão de um engajamento em assuntos internos de outros países, de corte ideológico, apoiando a oposição venezuelana em suas tentativas de ruptura institucional (através do “grupo de Lima”). Ao abandonar as iniciativas anteriores de integração, propôs o lançamento do Prosul, uma organização regional sem maiores compromissos ou institucionalidade.A política externa de Bolsonaro aponta para uma reorientação da política externa no sistema internacional, o que significaria não apenas uma inflexão, mas mudança nos postulados históricos, nos paradigmas e matrizes atuais de inserção internacional. A questão é se os fundamentos da mudança, a saber “burocracia”, “reestruturação doméstica”, e “choque externo” sustentam essa reorientação. Nesse sentido, a política externa de Bolsonaro é marcada por quatro contradições.–Contradição com a tradição e compromissos da política externa brasileira, o que pode provocar choques com a burocracia (diplomática, econômica e militar) e rupturas com padrões de inserção internacional, provocando perda de confiança de parceiros internacionais ao denunciar compromissos assumidos. No caso do Itamaraty, a nomeação de um chanceler considerado jovem, “ideológico olavista” e sem liderança provocou temores de desorganização interna e rupturas institucionais.–Contradição com os interesses dos grupos internos no Brasil (setor agrícola e industrial) pragmáticos e setores ideológicos principistas. Um exemplo foi o temor da repercussão comercial para o agronegócio brasileiro sobre um possível boicote dos países árabes, se ocorresse a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém. Nesse mesmo sentido, a exportação industrial brasileira pode ser comprometida com mudanças bruscas em relação ao Mercosul e América do Sul. Provavelmente a política externa de Bolsonaro oscilará entre os globalistas liberais de direita e os anti-globalistas conservadores.–Contradição com o tamanho e o peso do Brasil no sistema internacional. Os interesses do Brasil são de uma potência emergente, e o país enfrentaria dificuldades executando uma política de país “menor” no sistema internacional. O desengajamento brasileiro tanto na região como nos fóruns multilaterais pode ter efeitos negativos a curto e médio prazo. Na América do Sul, estaria abrindo espaço para atuação de potências extrarregionais, como China e Estados Unidos. O desengajamento brasileiro reduziria a capacidade do país em defender seus próprios interesses e, ao mesmo tempo, colaborar para a construção da ordem internacional. A autonomia, objetivo maior da diplomacia brasileira (Vigevani & Ramanzini, 2014), ficaria novamente fragilizada.–Contradição com a estrutura do sistema internacional. O governo brasileiro, ao negar a multipolaridade, com a ascensão de outras potências na ordem global, pode se posicionar erroneamente no sistema internacional e perder espaços de barganha e retrair capacidades negociadoras. No grande jogo global, a crise brasileira priva os defensores da multipolaridade e da cooperação Sul-Sul de um importante aliado. Em relação aos BRICS, reforçaria a liderança chinesa e enfraqueceria as posições e demandas brasileiras.Essas contradições tornam insustentável, em médio prazo, a manutenção desta política externa, pois fere os diversos “interesses nacionais”. Há um “desencaixe” ou “desalinhamento” entre a tentativa de reorientação internacional e as condições objetivas para que isso ocorra. As bases domésticas, grupos de interesse, burocracia e a polaridade do sistema internacional não acompanham esta reorientação nesta intensidade. Em síntese, há um desencaixe entre ideologia do Governo Bolsonaro e seus apoiadores internos e externos e o pragmatismo dos diversos interesses, em especial da burguesia interna brasileira. O resultado é que essa política externa tende a ser “amenizada” ou “temperada” internamente, para que não cause prejuízos a diversos grupos internos no país. No contexto da pandemia, e com os crescentes desgastes causados pela diplomacia bolsonarista, pressões internas e internacionais causaram a demissão do chanceler Ernesto Araújo, em março de 2021.11A política externa de Bolsonaro no contexto da pandemiaO primeiro caso de coronavírus foi confirmado no Brasil em 26 de fevereiro de 2020. Em março de 2021, atingia a marca de 12 milhões de casos e 300 mil mortos. Neste período, a política externa brasileira manteve a posição de alinhamento com a ideologia do presidente norte-americano Donald Trump, de críticas e provocações à China e negacionismo quanto ao possível impacto em número de casos e mortalidade. Depois que o próprio presidente Trump (assim como outros líderes, como Obrador no México e Boris Jonhson na Inglaterra) reviu esta posição trabalharam políticas de isolamento mais amplas, o Governo Bolsonaro tem experimentado isolamento internacional.Neste contexto, o atual negacionismo da crise do coronavírus tem como origem os líderes da extrema direita, assentada numa ideologia “antiglobalista” e sintetizada numa dupla desconfiança: com organismos internacionais e com a China. Eles veem uma ameaça em qualquer órgão da ONU, como a OMS, neste momento. Entretanto, o próprio estrategista conservador americano Steve Bannon, interlocutor e referência ideológica da família Bolsonaro no Brasil, vinha defendendo medidas de isolamento social para os Estados Unidos e ficou inclusive surpreso com a manutenção da posição brasileira. E Bolsonaro, a cada dia, foi dobrando a aposta. Reiteradamente, Bolsonaro manifesta desconhecimento e desprezo pela atividade científica, divulga informações distorcidas e mantém um comportamento de ignorar ou ironizar recomendações de “isolamento social”. Além de contrariar e forçar a demissão de ministros da saúde em plena pandemia, o Presidente critica os governadores estaduais e prefeitos que defendem isolamento social e tomaram medidas para mitigar a crise sanitária.Enquanto isso, o chanceler brasileiro Ernesto Araújo publicou, em seu Blog, no dia 22 de abril de 2020, um artigo intitulado “comunavirus”. Neste artigo, a principal preocupação do chanceler é o “vírus ideológico” do comunismo, que pode se aproveitar do coronavírus para expandir seu “projeto globalista”. De acordo com Araújo, “O vírus aparece, de fato, como imensa oportunidade para acelerar o projeto globalista. Este já se vinha executando por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio da raça, do antinacionalismo, do cientificismo. São instrumentos eficientes, mas a pandemia, colocando indivíduos e sociedades diante do pânico da morte iminente, representa a exponencialização de todos eles. A pretexto da pandemia, o novo comunismo trata de construir um mundo sem nações, sem liberdade, sem espírito, dirigido por uma agência central de "solidariedade" encarregada de vigiar e punir.” (Araújo, Chegou o Comunavírus, Blog Pessoal, 2020).ARAÚJO, Ernesto. Chegou o Comunavírus. Blog Metapolítica. https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus.A preocupação ministerial com o comunismo persistia. No dia 30 de junho de 2020, a Funag promoveu a conferência “Castro-chavismo: crime organizado nas Américas”, com Carlos Sánchez Berzaín, diretor-executivo do Interamerican Institute for Democracy. Uma conferência virtual da Funag pelo jornalista espanhol Frederico Gimenez Losantos foi intitulada “Memória do Comunismo e atualidade do vírus da mentira”, dia 14 de julho.O governo brasileiro tenta, inclusive, reproduzir o dilema norte-americano cooperação/competição com a China. Nesse contexto, o Brasil conseguiu criar três incidentes diplomáticos gratuitos com a China. Um primeiro, com Eduardo Bolsonaro publicando confusas mensagens contra a China, contestado pela embaixada da China no Brasil e agravado por uma desastrada nota do Ministro das Relações Exteriores Brasileiro. O segundo, por uma ironia, também de raciocínio e de redação confusa, do Ministro da Educação Abraham Weintraub, repelida pela embaixada chinesa como “racista”. Uma terceira, provocada novamente pelo deputado Eduardo Bolsonaro, em novembro de 2020, no qual sugeria, pelo twitter, que a China praticava espionagem através da tecnologia 5G. Três crises gratuitas que deveriam ter sido evitadas em qualquer período, mas que ganham maior gravidade com a centralidade da China, tanto na produção de insumos médicos, como na sustentação da pauta de comércio exterior brasileira.O presidente Bolsonaro tem procurado encontrar culpados pelo fracasso de sua liderança, tanto para combater a doença, quanto para mitigar as dificuldades econômicas do país nesse quadro. Nos círculos diplomáticos e na imprensa internacional, as palavras são pouco elogiosas ao presidente brasileiro. Com essa política, ao passo em que critica internamente o “isolamento social”, Bolsonaro está experimentando um isolamento político no Brasil e no exterior. O resultado disso tudo é isolacionismo brasileiro, afastamento da China e outros parceiros, e baixa capacidade de influenciar concertações regionais e globais no manejo da crise.No contexto da pandemia, no âmbito multilateral o Brasil também tem se mostrado um ator distante e opaco, seguindo de forma geral os interesses norte-americanos. O Brasil seguiu os EUA ao não endossar uma resolução da Assembléia Geral da ONU, apoiada por 179 países, que rogava cooperação internacional para combater a pandemia. O presidente Bolsonaro também tem manifestado críticas a atuação da OMS. Brasil não apoiou a proposta da Índia, apoiada pela África do Sul, feita em outubro de 2020 na OMC, para quebra de patentes temporária de produtos relacionados à pandemia. A decisão do Governo Bolsonaro foi apoiar a posição dos EUA, Europa e Japão, fazendo perder força a proposta indiana. Importante lembrar que foi uma associação entre Brasil, Índia e África do Sul que garantiu, no início dos anos 2000, quebra de patentes para produção de medicamentos genéricos a baixo custo e que é considerado na bibliografia um dos fatores para a constituição do bloco IBAS (Índia, Brasil e África do Sul).Ao se afastar politicamente dos BRICS, em especial da Índia e da China, o Brasil experimentou um isolamento na diplomacia das vacinas e tem enfrentado dificuldades no fornecimento de insumos. Essa política isolacionista pode também ter implicações no comércio exterior brasileiro: 1) afastamento político de importantes compradores, como China; 2) problemas de exportação, resultante de descontrole sanitário; 3) isolamento nas articulações multilaterais de defesa comercial. As expectativas são de uma redução do PIB global e do comércio exterior a curto e médio prazo, o que traz como previsível elevação de disputa comercial e dificuldades adicionais de exportação (ajustes em cotas, medidas sanitárias, preferências). Os países que detêm maior poder econômico e político tendem a dar as cartas nas regras e negociações comerciais, num jogo duro que exige do Brasil uma forte articulação diplomática para colocar à mesa seus interesses.O enfraquecimento e esvaziamento das instituições regionais também estão cobrando seu preço, com a ausência de uma clara, forte e determinada articulação regional (em especial do Mercosul). Não interessa ao Brasil a fragilização econômica e sanitária dos vizinhos e é necessário um papel de liderança para resguardar nossos interesses estratégicos na região. As cadeias internacionais de valor tendem a se regionalizar neste contexto, para garantir mais segurança logística.Neste contexto, as críticas à política externa de Bolsonaro já romperam publicamente os círculos de esquerda e acadêmicos, envolvendo editoriais jornalísticos, e políticos de amplo espectro ideológico e até de direita. No dia 08 de maio de 2020, foi publicado um artigo em diversos jornais, assinado por Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Resek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout, intitulado “A reconstrução da política externa brasileira”. Neste artigo, os autores, chanceleres, ministros e um ex-presidente fazem críticas contundentes à política externa de Bolsonaro, que estaria em desacordo com a constituição. O chanceler Araújo respondeu energicamente às críticas. A questão mais interessante no artigo é a conclamação do judiciário e do congresso para intervir, o que significaria mais um capítulo na crescente judicialização da vida política brasileira. Entretanto, o chanceler Ernesto Araújo se manteve no cargo até março de 2021.Diante desse contexto, a imagem brasileira no exterior se deteriorou. O Brasil é visto como descontrolado sanitariamente, com um governo negacionista em relação à pandemia, e à deriva do ponto de vista de construção de soluções. O resultado é fechamento de fronteiras e proibição de viagens desde o Brasil. Na questão do meio ambiente, há manifestações contrárias aos investimentos no Brasil, como forma de pressão.A contenção da pandemia e a reconstrução da economia regional e global nos próximos meses e anos exigirão da diplomacia brasileira a intensificação da cooperação, em especial a cooperação científica e tecnológica na área de saúde, mas também nos seus aspectos políticos e econômico-comerciais. Exigirá do Brasil também ter uma compreensão clara das mudanças no sistema internacional e suas fricções geopolíticas, para se posicionar corretamente e defender os interesses do País. Abaixo estão listadas algumas tarefas urgentes para a diplomacia brasileira:a)O Brasil, como uma potência regional, com fronteiras com quase todos os países da América do Sul, deveria estar articulando uma concertação regional, tanto para combater a disseminação do vírus quanto para mitigar seus efeitos, em especial sobre a economia regional. O Mercosul precisa trabalhar ações conjunturas de mitigação da crise sanitária e seus reflexos no comércio internacional.b)O Brasil, como uma potência emergente, deve estar engajado multilateralmente nas discussões globais sobre a crise. As instituições multilaterais e regimes internacionais devem ser espaços de articulação e buscas de consensos para a solução da crise. O Brasil tem sua carga de responsabilidade pelas suas dimensões e projeção num sistema crescentemente multipolar. Da mesma forma, os BRICS podem ser testados na sua coesão exatamente em um momento como esse.c)O Brasil, como uma potência intermediária, deve estar inserido em múltiplos pontos nodais de cooperação, tanto com os países desenvolvidos, quanto com os países mais pobres. A cooperação Sul-Sul do Brasil na área de saúde, em especial em relação aos países africanos, é um patrimônio que o Brasil pode aproveitar. A articulação IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) teve origem em uma positiva cooperação em saúde e pode ser reativada neste contexto. A cooperação científica ganha centralidade neste processo.Assim, a diplomacia brasileira está atuando num patamar muito abaixo das suas capacidades e das necessidades do país, que continua consumindo seu patrimônio diplomático e fragilizando sua inserção internacional, num rápido processo de isolamento. Tal postura poderá ter efeitos altamente nocivos para o país em curto e médio prazo.No final de março de 2021, depois enfrentar forte pressão de membros do governo e do Congresso, o ministro Ernesto Araújo pede demissão. No dia 06 de abril, o novo chanceler, Carlo Alberto Franco França, toma posse. Em seu discurso de posse, França elencou como prioridade a “diplomacia da saúde”, a “modernização da economia” e “urgência climática”. Também afirmou a necessidade de valorizar o multilateralismo e reivindicou uma diplomacia universalista. Do ponto de vista discursivo, aponta-se para uma inflexão na política externa de Bolsonaro, mas ainda cedo para definir se é apenas um ajuste ou uma mudança um pouco mais profunda, nos termos de Charles Hermann (1990).12Considerações finaisA presidente Dilma Rousseff buscou a continuidade da política externa do Governo Lula, operando a mesma matriz de inserção internacional do Brasil. Entretanto, utilizou um perfil mais discreto, evidenciado, principalmente, no menor número de viagens internacionais, em comparação com o mesmo período do Governo Lula. Utilizando menos os recursos da diplomacia presidencial, Dilma delegou para os assessores mais diretos e para o corpo diplomático a condução da política externa. Entretanto, ao utilizar para a diplomacia o mesmo modelo de gestão “de resultados” utilizado para o conjunto do governo, Dilma mantinha o controle das diretrizes da inserção internacional do país. A demanda pelas reformas no sistema internacional, a articulação com os países emergentes, o fortalecimento da cooperação Sul-Sul e uma posição de altivez e autonomia em relação às grandes potências se mantiveram no Governo Dilma. Em relação às mudanças de ênfase, a política externa de Dilma focou na redução dos danos da crise econômica internacional, cuja articulação com os BRICS e a reforma do sistema econômico internacional ganhou centralidade.Entretanto, os efeitos da crise política e econômica interna e as transformações internacionais atingiram as bases deste modelo de inserção internacional, fragilizando-o e trazendo poucos resultados. De tudo isso que foi abordado no texto, a destituição da presidente Dilma constitui um marco para a finalização da matriz de inserção regional iniciada desde o Governo Lula (2003–2010). A crise internacional, a crise política e econômica interna, as limitações da inserção de uma potência emergente periférica, bem como o giro político na América do Sul podem ser apontados como fatores, ou variáveis, essenciais para compreender as transformações matriciais da política externa brasileira. Entretanto, as indefinições da política brasileira atual e as contradições da inserção internacional do Brasil não permitem afirmar que a matriz se esgotou completamente.O governo de Michel Temer (2016–2018) marca uma mudança na matriz da política externa brasileira, ao reorientar o engajamento na América do Sul, priorizar as relações bilaterais com os países desenvolvidos e fragilizar a participação nas coalizões de geometria variável, como os BRICS. Assim, as diretrizes da política externa promovida pelo Governo Temer refletiram a conjuntura internacional, a crise brasileira e os interesses de um novo bloco de poder, que procura reorientar a política externa brasileira para uma nova matriz de inserção internacional, mas permaneceu como um período de transição.Já com o governo de Jair Bolsonaro, verifica-se uma clara inflexão matricial na política externa brasileira, com fortes significados internos e internacionais. Em uma avaliação preliminar, verifica-se que os condicionantes da mudança matricial da política externa brasileira têm como fundamentos: a) a ascensão dos movimentos e governos conservadores na América Latina e no Ocidente; b) a crítica à política externa desenvolvida na “era PT”; c) a crítica “anti-globalista” e paralisia das instituições multilaterais; d) as mudanças na política externa norte-americana sob o Governo Trump; e) a crise econômica prolongada; f) desengajamento da integração regional.Entretanto, verifica-se um “desencaixe” ou “desalinhamento” entre a tentativa de reorientação internacional e as condições objetivas para que isso ocorra. As bases domésticas, grupos de interesse, burocracia e a polaridade do sistema internacional não acompanham uma reorientação nesta intensidade. Em síntese, há um desencaixe entre ideologia do Governo Bolsonaro e seus apoiadores internos e externos e o pragmatismo dos diversos interesses, em especial da burguesia interna brasileira, deixando em aberto os contornos da nova matriz de política externa.

Journal

Interacción Sino-Iberoamericana / Sino-Iberoamerican Interactionde Gruyter

Published: Mar 1, 2022

Keywords: Política Externa Brasileira; Governo Dilma; Governo Temer; Governo Bolsonaro; Brazilian foreign policy; Dilma government; Temer government; Bolsonaro government

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